Confesso que sou da minoria (e pretendo continuar nela…)
Paulo Roberto de Almeida
Sim, pertenço a uma pequena minoria, certamente no Brasil, talvez mesmo no mundo (ainda que não caiba exagerar...). Não que eu fique preocupado com isso, mas desejo simplesmente falar sobre essa percepção, ou mera constatação, para fins de registro e inclusão em minhas futuras “memórias intelectuais”.
O fato é que eu tenho a nítida impressão de que pertenço a uma minoria, a uma pequena, a uma ínfima minoria que não partilha dos sentimentos, opiniões ou posturas da maioria dos brasileiros. Talvez seja algum elitismo intelectual da minha parte (o que não creio), mas não consigo me entusiasmar com o clima de euforia que acomete (c’est le cas de le dire...) a singela maioria (bota singela nisso) dos habitantes deste país (sans jeu de mots, s’il-vous-plaît...).
Com efeito, eu não consigo seguir, nem puxado, nem empurrado, a unanimidade praticamente arrasadora em torno do “nosso guia” (no Brasil e, em grande parte também, no exterior), esse oba-oba em torno da situação econômica, o embevecimento beato com o “nunca antes neste país”, o ambiente de auto-congratulação permanente com as supostas realizações estupendas deste governo e de sua fantástica máquina de propaganda.
Olhando tudo isso eu não consigo aderir ao espetáculo de panegíricos insensatos (em grande parte self-made e auto-aplicáveis), posto que a realidade que eu vejo é completamente diferente. Não gostaria de destoar do ambiente geral (mas já o fazendo), permito-me ser do contra, não por contrariedade inata, ou desejo de ser diferente, mas simplesmente por não suportar cegueira coletiva.
Vejo, ao contrário do que alguns apregoam por aí, uma degradação constante das instituições, o rebaixamento moral do Estado, a ignorância sendo erigida em qualidade popular, a mentira usada como arma política, a castração do parlamento como simples expediente de confirmação de uma nulidade, o emprego de táticas equivalentes à guerra de eliminação contra os adversários políticos, o desmantelamento consciente (talvez até inconsciente) dos partidos como legítimos representantes de correntes distintas de opinião, enfim, uma deterioração quase completa das virtudes cívicas de uma república democrática e o fortalecimento das piores virtudes do democratismo vulgar e popularesco.
Que me perdoem os muito tolerantes ou os irremediavelmente otimistas, mas não consigo achar nada, absolutamente nada de bom na exaltação do anti-estudo, da falta de leitura, do senso comum erigido em capacidade pensante, dos argumentos vulgares brandidos como se fossem identificação com a massa, desse cultivar de ervas daninhas como se fossem finas flores da inteligência. Sobretudo, não consigo tolerar – me desculpem, mais uma vez, aqueles muito tolerantes – a desonestidade intelectual, a irresponsabilidade no trato da coisa pública, a mentira sistemática que apenas engana os mais ingênuos (mas que é sancionada por aqueles oportunistas que sabem), a mistificação continua de supostos grandes feitos, quando o que se tem, na verdade, é um teatro de ilusões e uma comédia de erros grosseiros.
Assusta-me, por outro lado, ver tantos colegas acadêmicos, tantos parceiros profissionais, tantos pretensos “intelectuais” silenciarem em face de tantas bravatas vulgares, de tantas mentiras deslavadas, de tanta má-fé acumulada, sem nenhum comentário a fazer, sem nenhum gesto de repúdio, sem nenhum sinal de resistência mental, gestual que seja (mesmo sem chegar ao protesto aberto ou à manifestação escrita, como a que agora faço). Fico, de verdade, estarrecido, não tanto em face do perpetrador de bobagens – pois aprendi desde cedo a não esperar nada de inteligente vindo desse lado – mas em face dos supostos defensores da imaginação criadora, do iluminismo teórico, da verdade que liberta. Assusta-me o silêncio culpado e a irresponsabilidade dos intelectuais. Talvez seja covardia deles, talvez seja mero oportunismo.
Não é sem uma ponta de tristeza que contemplo tudo isso, mas tampouco me deixo levar pelo desespero, e nisso não vai nenhum sentimento político, longe disso. Estou aqui refletindo em historiador das idéias, ou, se desejarem outras comparações, em arqueólogo das decadências passadas, em antropólogo das sociedades fracassadas, em psicanalista dos sonhos desfeitos. Não é a primeira vez que uma sociedade se deixa levar pelos piores instintos e pelas mais baixas tendências, pelo declínio intelectual – mesmo em meio a um suposto avanço material – e pela erosão moral. Mas é provavelmente a primeira vez que me é dado assistir a esses fenômenos diretamente, depois de ter lido tanto sobre a decadência em outras sociedades. Até cheguei a teorizar um pouco sobre isso, algum tempo atrás: “Pequeno manual prático da decadência (recomendável em caráter preventivo...)”, revista Espaço Acadêmico (ano 6, n. 71, abril 2007; link: http://www.espacoacademico.com.br/071/71pra.htm). Poderia ser um mau filme, apenas um pesadelo, mas é assustadoramente real...
Talvez caiba vaticinar uma previsão: não há nenhum risco de melhorar, no curto ou no médio prazo, cabendo apenas esperar que, no longo prazo, a educação melhorada da maioria permita reverter esse quadro, em favor de uma escolha mais adequada de líderes políticos e de melhores políticas públicas. Não digo isso por elitismo, por arrogância intelectual, apenas pela certeza de que as coisas poderiam ser melhores, um pouco melhores, se tivéssemos uma elite – entre a qual eu não incluo a classe política – preocupada com o destino da nação e não apenas com o seu dinheiro.
Mas, poderão dizer os defensores da “nova ordem”, esta é uma reclamação habitual de intelectuais insatisfeitos e frustrados com o atual estado de coisas, já que esse processo expressaria uma mudança não prevista em seus (nossos) planos elitistas e conservadores, que não contemplariam uma inserção dos movimentos sociais e das camadas populares no jogo político. Creio que não preciso responder a mais esta mistificação, apenas lamentar que as oportunidades de diálogo estão se reduzindo perigosamente, ao ponto do estrangulamento das propostas inteligentes, mas não necessariamente “populares” ou politicamente corretas, sob certos pontos de vista.
Não me repugna viver em minoria, desde que eu mantenha um ceticismo sadio em face das verdades reveladas, nem suportar um isolamento relativo, enquanto conservo um discreto otimismo quanto às chances futuras de um rebrotar da inteligência. Vale!
Brasília, 17.11.2009
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Um comentário:
Faz escuro, mas nós cantamos.
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