Une saison dans les plaines: dez anos fora do Itamaraty
Paulo Roberto de Almeida
Ensaio para a seção “Além do Itamaraty” do Boletim ADB
(ano 16, n. 67, outubro-novembro-dezembro 2009, p. 20-21).
No último mês de Setembro de 2009 completei exatos dez anos fora da Secretaria de Estado. Well, sort of: contando-se os quatro anos como ministro-conselheiro na Embaixada em Washington – de setembro de 1999 a outubro de 2003 – foram, mais precisamente, seis anos “líquidos” fora do Itamaraty, o que, se não me coloca num Guiness dos diplomatas da ativa alijados do corpo do Estado para o qual fizeram concurso de entrada, certamente me permite uma visão diferente de como é a vida “além do Itamaraty”. A bem da verdade, talvez os dez anos não se tenham esgotado de vez, posto que acabo de ser reintegrado à Secretaria de Estado apenas para ser removido a um posto no exterior dentro de mais alguns meses...
Não que eu tenha escolhido voluntariamente tal “estada na planície”, mas são as “trapaças da sorte” que nos levam a situações por vezes inesperadas. A bem da verdade, quando da decisão de deixar a capital do Império para voltar ao cerrado central, eu dispunha de um convite para trabalhar numa área não executiva da Secretaria de Estado, não a que eu teria voluntariamente escolhido mas, digamos, aquela que de certa forma mais combinava com o meu caráter exageradamente estudioso. Não sei bem como, ou por que, essa possibilidade não se confirmou, por razões ainda obscuras, assim como foram obscuros dois outros bloqueios quando novas oportunidades apareceram, já no meio da estada em Brasília. Não creio que as explicações estejam nos “impulsos cegos do mercado” – ou seja, apenas a competição entre os mais capazes, ou os mais bem dotados pelas forças da natureza. Elas talvez se situem bem mais nos “espaços de política”, mas isso caberia esclarecer um dia.
O fato é que, em meados de 2003, aceitei um convite do então ministro-chefe da Secretaria de Comunicação de Governo e de Assuntos Estratégicos para assessorá-lo no recém criado Núcleo de Assuntos Estratégicos, uma espécie de mini policy-planning staff, vinculado diretamente à Presidência da República. Meu primeiro trabalho foi colaborar num projeto para trazer de volta ao Estado o sentido do planejamento estratégico, de cuja condição ele se tinha aparentemente afastado por força de décadas de inflação galopante, de uma longa crise crônica, entremeada por planos mal concebidos e mal aplicados, e de várias tentativas de estabilização macroeconômica finalmente consolidadas no Plano Real. Comecei justamente por fazer um balanço da experiência brasileira de planejamento desde o pós-guerra, um ensaio publicado no primeiro número dos Cadernos do NAE, dedicado à apresentação do então nascente projeto “Brasil Três Tempos: 2007, 2015, 2002”.
Permito-me um parênteses para explicar a origem desse projeto tri-anualizado, algo que já me foi perguntado por diversos interlocutores aos quais fiquei devendo uma explicação formal. Quando cheguei ao NAE, este ainda indefinido quanto à sua composição e funcionamento, se discutia um projeto de longo prazo para o Brasil, algo como 2020, talvez nos moldes dos cenários alternativos que tinham sido elaborados na encarnação anterior da Secretaria de Assuntos Estratégicos, sob o ministro Ronaldo Sardenberg. Pessoalmente, considerei essa perspectiva temporal “keynesianamente” muito longínqua, e propus, em seu lugar, um “Brasil 2008”, para marcar duzentos anos de administração e de empreendimentos do Estado a partir do próprio Brasil. Como estávamos ainda em 2003, e o governo deveria, teoricamente, encerrar-se em 2006, não haveria, a rigor, um planejamento para a administração em curso, mas sim uma série de propostas – que eu concebia ao estilo das metas do milênio da ONU, mas reduzidas à metade do prazo, e mais exigentes em seu conteúdo – que permitiriam ao Brasil retomar o sentido estratégico da construção nacional (não necessariamente do próprio Estado) com objetivos estritamente delimitados e focados no seu cumprimento. Foi dessa discussão entre o curto, o médio e o longo prazo que nasceu a idéia de se empreender um projeto em “três tempos”, sendo 2007 a primeira etapa, 2015 a superação das metas do milênio, e 2022 a comemoração dos duzentos anos de independência com uma nação presumivelmente desenvolvida.
Minha concepção, porém, era a de um conjunto limitado de objetivos socioeconômicos – talvez não mais do que cinco grandes objetivos estratégicos – de maneira a realmente concentrar os esforços naquilo que eu considerava crucial para o desenvolvimento brasileiro: a educação, não necessariamente a universitária, e menos ainda aquela concentrada nas instituições federais de ensino superior. O projeto – não por minha escolha – acabou contemplando um número exageradamente elevado de “objetivos estratégicos”, o que obviamente não ajudou na focalização das ações. Seja como for, ao lado desses trabalhos dotados de sofisticada metodologia, levados a cabo, em sua maior parte, no excelente ambiente de trabalho intelectual que é o CGEE – Centro de Gestão e Estudos Estratégicos, onde fiz bons amigos – também escrevi e encaminhei ao chefe do NAE várias dezenas de mini-memos de trabalho, sobre diversos assuntos, enfocando em geral temas de políticas públicas em discussão no governo. Quando o responsável máximo se afastou do NAE, por razões que não cabe discutir, coloquei imediatamente meu cargo à disposição e fiquei aguardando que a Secretaria de Estado me designasse para novas responsabilidades.
Foram praticamente dois anos e meio de espera, numa situação que eu mesmo classificaria de administrativamente irregular, não por minha escolha, obviamente. Esse tempo de afastamento da Secretaria de Estado, trabalhando em outro órgão, e de “travessia do deserto”, me permitiu, em todo caso, conhecer melhor o funcionamento (ou não?) da máquina do Estado – posto que interagi bastante, enquanto no NAE, com outras esferas da administração federal – e também a opinião de outros servidores do Estado sobre os diplomatas (nem sempre a mais elogiosa ou esperada). Devo dizer, aliás, que cansavam-me aquelas intermináveis reuniões no Palácio do Planalto, com alguns supostos decisores da cúpula, tecnocratas gramscianos (mas sem cultura renascentista) e que concluíam, depois de três horas de discussões atabalhoadas, por não concluir nada; ou melhor: se decidia fazer uma consulta entre os “movimentos sociais”, como se estes detivessem a “luz divina” do planejamento estatal.
Desfrutei, durante esse tempo, de uma liberdade que provavelmente não teria conhecido no Itamaraty: para escrever, para viajar, para aceitar alguns convites acadêmicos que teriam passado ao largo de ocupações burocráticas na Secretaria de Estado. Certamente que esse afastamento – involuntário permito-me sublinhar mais uma vez – prejudicou minha carreira, talvez de uma maneira irremediável, mas cada um deve assumir plena responsabilidade por suas escolhas, atitudes e iniciativas. Sou e continuo responsável por tudo aquilo que digo, que escrevo, que publico, o que por vezes não é bem visto em certos meios, mas isso não me angustia demasiado: tenho por norma dizer exatamente o que penso – como resultado de pesquisas, leituras e reflexões – e não costumo depositar o cérebro na portaria quando vou trabalhar. Meu critério exclusivo, seja na vida acadêmica, seja na profissional, é o da honestidade intelectual, o que por vezes não se coaduna bem com certos meios politizados...
Minha travessia pela planície das idéias – em contraposição aos commanding heights da ação executiva em negociações diplomáticas – tem sido gratificante no plano pessoal e creio ter servido ao País tão bem quanto qualquer outro funcionário de Estado, posto que nunca abandonei a perspectiva do serviço ativo. A nação comporta e abriga diferentes tipos de colaboração: continuo fazendo a minha parte...
PS.: Em todo caso, agradeço a todos aqueles que me permitiram tanta liberdade produtiva: nesse período, escrevi quatro livros e incontáveis ensaios acadêmicos e textos menores. Meu Lattes engordou, mas ninguém mete a mão nele por mim...
Brasília, 4 novembro 2009.
domingo, novembro 22, 2009
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