Etapas cronológicas (mais uma) e sentido da vida (se é que existe)
Paulo Roberto de Almeida
Cada nova etapa da vida, ou melhor, cada marca do avanço anual em nosso itinerário pessoal (sempre irreversível, como a flecha do tempo), convida, ao que parece: (a) à elaboração de um balanço recapitulativo; (b) a se fazer uma reconsideração do que já foi cumprido, até o momento do balanço, ou seja, proceder a uma avaliação do que poderia ter sido feito, e todavia não foi; e (c) eventualmente, a uma reconfiguração (novas promessas?) do que se pretende fazer, desse momento para a frente.
Nem todos cumprem essa tripla tarefa; na verdade, são poucos os que buscam avaliação e reconfiguração de tarefas auto-assumidas, uma ínfima minoria, creio eu. Apenas aqueles que estabelecem objetivos muito precisos na vida costumam se fixar a obrigação de sempre reexaminar o trajeto percorrido e tentar alinhar novas metas para o itinerário futuro. Não poderia ser diferente comigo, pois estou sempre engajado em alguma tarefa ou várias (não raro “atrasadas”) todo o tempo. Nem sempre foi assim, mas desde que me reconheço como pessoa pensante (isto é, com minha própria cabeça), tenho sempre leituras esperando e vários trabalhos por terminar, uma interminável lista de “working papers” que parece bem maior nas intenções do que na relação de terminados.
Deve ser alguma doença obsessiva ou um desvio de personalidade, qualquer coisa no meio disso (ou mais além), embora estes termos sejam fortes demais, provavelmente, para caracterizar o que parece revelar apenas certo gosto exagerado pelos livros e um prazer especial no ato de escrever alguma coisa, qualquer coisa, em torno dessas leituras. Como já relatei anteriormente, aprendi a ler na tardia idade de sete anos, e desde então nunca mais parei; não tenho certeza de quando comecei a escrever (compulsivamente, quero dizer), mas também nunca mais parei, seja lá quando começou dessa forma furiosa.
Pois bem, quais são os meus objetivos de vida, pelo menos aqueles declaráveis? Depois de uma tentativa inicial de derrubar o sistema, mudar o regime e recriar a vida – o que vários de minha geração tentaram comigo – acomodei-me no trabalho intelectual, bem menos perigoso, diga-se de passagem, do que minhas aventuras juvenis de criar um outro mundo possível. Na verdade, parece que essa era mesmo a minha vocação original, pois confesso nunca ter me adaptado muito bem a uma dupla vida (embora esse recurso excepcional seja por vezes conveniente). De fato, o ser incógnito não combina bem com o trabalho intelectual de pesquisa, de redação e de publicação de ensaios sobre questões diversas de interesse pessoal ou de relevância social. Alguns, talvez por timidez, assinam com pseudônimo poesias juvenis; outros, como foi o meu caso, usaram pseudônimos em situações de restrições à liberdade e ao direito de expressão, o que correspondeu, em grande medida, à situação do Brasil nos meus anos de formação e desenvolvimento intelectual. Terei, oportunamente, de recuperar alguns desses escritos “alternativos” e reinseri-los no conjunto da produção, o que de toda forma não me parece muito urgente ou importante.
O fato é que, restabelecida a democracia no Brasil, e eliminada de vez a necessidade da discrição ou do subterfúgio, dei início a uma produção escrita que pode ser considerada como razoável nos meios acadêmicos, ou talvez até excepcional no seio da casta diplomática, sempre mais contida na expressão pública de opiniões ou argumentos pessoais sobre temas alheios à sua esfera de competência específica. Essa atividade sempre esteve associada, ainda antes de assumir minha condição profissional de carreira, ao exercício de lides acadêmicas voluntariamente assumidas (e parcialmente cumpridas, na medida de minhas disponibilidades em relação ao trabalho principal).
Nunca me preocupei em ser apenas acadêmico (ou teórico), e de fato sou essencialmente critico em relação à situação de baixa produtividade de nossas universidades públicas, assim como nunca pretendi ser apenas diplomata, mantendo uma atitude de avaliação realista em torno de nossas supostas qualidades apregoadas. De fato, o trabalho intelectual se justifica por si mesmo, sem necessidade de suporte acadêmico ou profissional, sem sequer vinculação a qualquer esforço editorial ou de publicação (sempre um problema num país de restritas possibilidades nessa área, como o Brasil). Na era das tecnologias da informação e da livre disposição e acesso a espaços abertos de comunicação e interação pública, como são os blogs, essas limitações já não representam mais um problema: paradoxalmente, os blogs são o maior “free lunch” que o capitalismo tem a oferecer e não sou eu que vai tentar resolver essa contradição positiva sob todos os pontos de vista.
Para ser mais preciso, desde quase dez anos mantenho meu próprio site pagante – nos cinco anos anteriores em formato gratuito, e limitado – que foi concebido e realizado exclusivamente para fins didáticos e docentes, ou seja para informar, formar e subsidiar estudantes desorientados, jovens dubitativos e outros curiosos eventuais. A despeito de certo número (mais de uma dúzia) de livros editados comercialmente, nunca me preocupei em obter qualquer ganho com os meus escritos, e continuo não motivado por esse aspecto da produção intelectual (já que não tiro o meu sustento dessa frente de trabalho, nem pretendo acumular capital, primitiva ou secundariamente). Daí a grande – alguns diriam enorme – disponibilidade de textos acabados (numerados) em meu site e um volume ainda maior de textos que ainda pretendo escrever (e de livros que gostaria de publicar).
Não tenho uma linha determinada em toda essa produção – respeitável, reconheço – mas tenho consciência de minhas competências e incompetências, embora seja “intrometido” o suficiente para me debruçar sobre questões que não fazem necessariamente parte de meu universo de trabalho ou de pesquisas. De fato, tento concentrar-me em temas para os quais tenho afeição intelectual ou empatias sociais. Afastado o vezo ideológico de meus primeiros escritos – abertos ou “clandestinos” – e a orientação militante de alguns textos sociológicos da primeira fase, tenho seguido a inclinação natural do ambiente profissional – que é o universo das relações internacionais – e meu gosto acentuado pela pesquisa histórica (para a qual não fui treinado técnica ou metodologicamente, diga-se de passagem). Acumularam-se, assim, livros e ensaios sobre a política externa e as relações internacionais do Brasil, sobre a economia mundial e o desenvolvimento econômico comparado, bem como os trabalhos de história diplomática e de historiografia especializada nessa área.
Também tenho especial gosto pela história das idéias e pelos debates em torno de políticas publicas, em especial nos terrenos da economia e da educação. Nesses campos, porém, sou mais um “livre atirador” do que um especialista com credenciais aferidas. Não deixo, contudo, de elaborar minhas pílulas atrevidas e de oferecê-las livremente, como garrafas lançadas ao mar, esperando que alguém as recolha e retome o debate. Tenho sido um critico unilateral dos chamados antiglobalizadores – ou altermundialistas, como eles preferem se chamar – por encontrá-los especialmente irrealistas, inconseqüentes ou até mesmo prejudiciais à definição de uma via adequada ao desenvolvimento dos países atrasados. Não creio que o correto caminho da prosperidade e do crescimento sustentado passe, de perto ou de longe, pelas políticas preconizadas por esse bando de órfãos das soluções utópicas e de opositores da globalização, mas meus numerosos escritos nessa vertente têm recebido escassa repercussão. Talvez eu não esteja formulando minhas idéias e argumentos de maneira compreensível a maioria de meus leitores, pois confesso certa prolixidade de expressão e uma tendência ao alongamento da discussão (além, ao que parece, de um discutível estilo “florestânico”, adquirido no contato precoce com a escola paulista de sociologia).
Ao fim e ao cabo, o balanço que eu posso fazer de minha produção não é de nenhuma forma desprezível, e digo isso sem qualquer sentimento de auto-elogio ou de satisfação injustificada. Não estou, de verdade, preocupado em acumular volume quilométrico, e a numeração e a listagem de meus trabalhos se destinam exclusivamente à organização necessária da produção (do contrário, eu não conseguiria encontrar algum texto esquecido nas camadas geológicas dessa massa caótica de textos diversos). De certa forma, cumpri com a vocação secreta ou implícita da juventude, qual seja, viver com livros, pelos livros, para os livros, essencialmente no debate e no confronto de idéias. Por certo, poderia ter feito mais do que efetivamente fiz, em especial na finalização de longos ensaios ou livros há muito tempo parados no pipeline dos “working files”, mas isso significa que eu teria de dedicar-me unicamente à atividade intelectual, o que tampouco representa a solução ideal para uma personalidade inquieta, como eu, com a situação do mundo real, em especial no Brasil.
Quanto a prometer novos empreendimentos num momento de balanço e recapitulação, creio que vou eximir de promessas exageradas, pois já são muitos os projetos inconclusos e os esquemas desenhados e não realizados. Se eu conseguir, daqui para a frente, “liquidar” uma parte, que seja, dos textos esboçados e diminuir, ao menos um pouco, a pasta dos “Books To Work”, já me darei por satisfeito pelos anos à frente. Quanto ao público leitor, de fato não sei qual a sua exata composição, a não ser a vaga noção de que estudantes de nível universitário possam estar encontrando, em meu site e blogs, alguns textos interessantes para se divertir ou ajudar em algum encargo acadêmico. Para ser sincero, não escrevo para alguém ou alguma categoria de leitores em particular; escrevo para minha própria satisfação e por necessidade interior, o que me deixa inteiramente indiferente à possível repercussão externa que meus textos possam ter (a não ser a consciência do esforço didático e docente, ainda que indireto).
Em última instância, o sentido de todo trabalho intelectual é uma espécie de diálogo à distância com meus predecessores acadêmicos – os que reforçaram ou forneceram os argumentos usados por mim – e com aqueles que ainda virão, daqui para a frente. Não posso esconder certa frustração – para não dizer séria preocupação – com a deterioração visível do ambiente acadêmico no Brasil, a caminho de uma nítida erosão da qualidade do trabalho intelectual e, no meu universo de atuação (as humanidades), de indisfarçável reforço dos seus elementos mais medíocres (que são também os mais militantes no rebaixamento involuntário da produção acadêmica). Isso está fora de minha capacidade alterar de modo significativo, mas procuro, dentro de minhas áreas de atuação, elevar a qualidade do debate público, sem qualquer ilusão, contudo, de que o Brasil consiga reverter esse quadro no futuro imediato.
Descartando, porém, o pessimismo e o derrotismo, persistirei na minha tarefa auto-assumida de ler, resumir, escrever, ensinar, publicar, debater, que é tudo o que posso fazer de modo inteiramente livre, à margem e paralelamente de minhas ocupações profissionais. Cabe persistir, em quaisquer circunstâncias. É o que continuarei fazendo enquanto disponho de condições para tal. Vale!
Brasília, 19 de novembro de 2009.
quinta-feira, novembro 19, 2009
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