quinta-feira, janeiro 22, 2009

14) Minitratado das entrelinhas - Paulo Roberto de Almeida

Minitratado das entrelinhas
Paulo Roberto de Almeida

Quote:
Sempre me encantaram as entrelinhas. O que não está posto é que encerra a possibilidade, o sugerido é que comanda a liberdade de interpretar. Uma reticência bem colocada, por exemplo, é capaz de acomodar os ânimos mais opostos. Penso que a um diplomata se deve ensinar tanto a arte-manha das palavras quanto a dos silêncios. Assim como devemos, na religião, reservar um espaço ao Mistério, forçoso, entre as linhas, reservar um horizonte em branco, ou no máximo pontilhado...
Unquote.

Tratados, em geral, costumam ser solenes, como convém aos grandes textos declaratórios, escritos em tom impessoal e devendo refletir alguma realidade objetiva, uma relação entre Estados, um contrato entre as partes, com deveres e obrigações compartilhados e estritamente observados pelo tempo previsto de duração. Eles são, se podemos dizer, o retrato de uma relação de confiança, fundada na boa-fé, pensada para construir algo de positivo para todos aqueles que por eles decidem se obrigar e, por isso mesmo, tão carregados de certezas quanto desprovidos de ambigüidades. Eles devem, sobretudo, ser lidos literalmente, com perdão pela redundância, sem qualquer distorção de sentido ou de intenção, ou pelo menos deixando um espaço mínimo para as interpretações (que fazem a alegria dos advogados, mas o desespero dos juízes).
Minitratados, por suposição, deveriam ser versões reduzidas de seus irmãos maiores, contendo um mínimo de disposições num espaço restrito, mas este não é o caso dos meus mini-tratados, cuja função é exclusivamente para falar de sentimentos. Anos atrás, ao inaugurar a série, escrevi um minitratado das reticências (subtítulo: “em defesa de uma inutilidade necessária…”), que especulava, na verdade, sobre as indecisões da vida, os episódios de ambigüidade relacional que, vez ou outra, sempre enfrentamos, com bom humor ou com preocupação, mas que são inevitáveis em toda trajetória sentimental. (Ver esse primeiro minitratado num dos meus blogs, neste link)
As reticências, em todo caso, são mais fáceis de serem manipuladas do que as entrelinhas. Afinal de contas, elas podem ser jogadas aqui e ali, no meio ou no final do texto, segundo a vontade exclusiva do autor, um pouco para demonstrar suas pequenas continuidades descontínuas... Elas talvez funcionem como as crases, que, no dizer de Millor Fernandes, não foram feitas para humilhar ninguém, apenas estão ali para ajudar em caso de necessidade. As entrelinhas, por sua vez, podem existir ou não e todo o problema consiste em saber se elas estão, de fato, ali e o que podem fazer por nós. (Bem, mas talvez eu as esteja confundindo com as reticências...)
No caso das entrelinhas, seu principal problema, justamente, é que elas se escondem entre as linhas do texto, capciosamente, e não é fácil adivinhar o que, de verdade, elas estão querendo dizer. Tudo depende da interpretação que se pretende dar ao texto. Mas, pensando bem, se o texto é do próprio, ele pode “colocar” suas entrelinhas onde bem entender, certo? Nada, absolutamente nada, na vida de um mero redator de linhas tortas, na de um escrevinhador de ensaios surrealistas, ou mesmo na de um diplomata responsável por convenções e tratados, nada deveria impedir esse senhor da escrita de depositar (ou até de jogar) suas entrelinhas onde bem entendesse.
Bingo! Aí está a grande utilidade das entrelinhas: elas permitem, justamente, que possamos retirar de um texto texto qualquer aquilo que pretendemos, elas nos dão uma liberdade fundamental: a de ler um texto onde não existe nenhum texto, apenas a imaginação.
Bingo bis! Está aí: as entrelinhas nos libertam da rigidez dos contratos formais e daqueles compromissos muito estritos. Elas “estão” ali para nos dizer: aproveite, rapaz, levante os olhos desse texto chato e deixe voar a sua imaginação. Como diz a minha epígrafe bem escolhida, elas encerram uma possibilidade, sugerem a liberdade de interpretar, são capazes de acomodar os ânimos mais opostos... (ops, sem querer voltei às minhas reticências...).
Acredito que o autor (ou a autora) da epígrafe refletiu muito sobre a vida, seus contornos, seus retornos, suas surpresas e seus imponderáveis. Ele (ou ela) pode estar querendo dizer algo com seu minúsculo tratado sobre as entrelinhas. Deve ser alguém com experiência no manejo da palavra escrita e, sobretudo, dos sentimentos, seus e os alheios. Deve ter dedicado muitas linhas ambíguas a um amigo distante ou fora do seu alcance, momentaneamente. Refletiu muito sobre a vida e o coração, certamente...
A mim, também, como ao/à epigrafista, sempre me encantaram as entrelinhas. Curioso que, ainda antes de ter recebido as palavras em epígrafe, de uma maneira que agora me escapa, eu já tinha planejado escrever o meu mini-tratado das entrelinhas, precedendo uma poesia sobre os dois pontos e um mini-conto sobre o ponto e vírgula (todos eles sinais ambíguos, como o leitor há de perceber, promessas de algo mais, janelas para rotas ainda não determinadas, abertura para possibilidades imensas de dúvidas e de reflexões...). Eu ainda não tinha o formato definitivo deste novo mini-tratado, mas pretendia que ele fosse tão “obscuro” quanto o primeiro, das reticências, tão cheio de promessas quanto um travesssão de diálogo, tão aberto às confusões da mente quanto um salto de parágrafo, tão surpreendente quanto uma exclamação e tão questionador quanto um ponto de interrogação. Sou um diacrítico da escrita...
Pois eu fiquei muito meses parado, como que dominado por um ponto final, até que o/a epigrafista socorreu-me com suas frases esclarecedoras. Abriu-se todo um novo capítulo e eu resolvi escrever este texto, que, se não tem bem a forma de um mini-tratado, pretende pelo menos retomar a tradição dos diálogos peripatéticos, uma conversa com um interlocutor qualquer, que nos acompanha por um breve momento em nossa trajetória de pensamentos e reflexões. Uma rota ainda aberta, espero...
No silêncio de uma tela de computador, também há um pouco do mistério que ficou para trás, experiências que deixaram suas marcas em nossas mentes, sensações que ocuparam por alguns momentos nossos corações (ou que ainda estão lá...). São esses estados de espírito que estão presentes nas entrelinhas: eles não são visíveis, mas estão ali para os que sabem ver e sentir...
Na verdade, como sabem os cartógrafos, geógrafos, topógrafos e, em especial, os poetas, o horizonte é uma linha elástica, que recua cada vez que nos aproximamos dela. Sua paciência é infinita, assim como são infinitas as possibilidades abertas pelas entrelinhas... (ainda mais com reticências, desculpem a insistência...).
Eu queria dizer ao/à epigrafista involutário(a), que ele(a) muito me ajudou na tarefa de juntar minhas poucas idéias sobre as entrelinhas. Sem os conceitos ali transcritos eu jamais teria descoberto o poder secreto das entrelinhas, talvez eu nunca me decidisse por escrever este texto, todo ele feito nas entrelinhas. Não sei se ele será capaz, como escrito na epígrafe, de acomodar ânimos opostos, mas ele certamente ajuda a construir um cenário de mistério, um horizonte de esperança, uma promessa não cumprida. Eu consigo ver, nas entrelinhas deste meu texto, possibilidades ainda não exploradas, sugestões nunca realizadas, sonhos muitas vezes sonhados e ainda não acontecidos, pelo menos, até agora. Mas isto nada prejulga quanto ao futuro...
É tudo o que se espera, aliás, de um mini-tratado sobre as entrelinhas...

Brasília, 22 de janeiro de 2009.

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