quinta-feira, janeiro 22, 2009

14) Minitratado das entrelinhas - Paulo Roberto de Almeida

Minitratado das entrelinhas
Paulo Roberto de Almeida

Quote:
Sempre me encantaram as entrelinhas. O que não está posto é que encerra a possibilidade, o sugerido é que comanda a liberdade de interpretar. Uma reticência bem colocada, por exemplo, é capaz de acomodar os ânimos mais opostos. Penso que a um diplomata se deve ensinar tanto a arte-manha das palavras quanto a dos silêncios. Assim como devemos, na religião, reservar um espaço ao Mistério, forçoso, entre as linhas, reservar um horizonte em branco, ou no máximo pontilhado...
Unquote.

Tratados, em geral, costumam ser solenes, como convém aos grandes textos declaratórios, escritos em tom impessoal e devendo refletir alguma realidade objetiva, uma relação entre Estados, um contrato entre as partes, com deveres e obrigações compartilhados e estritamente observados pelo tempo previsto de duração. Eles são, se podemos dizer, o retrato de uma relação de confiança, fundada na boa-fé, pensada para construir algo de positivo para todos aqueles que por eles decidem se obrigar e, por isso mesmo, tão carregados de certezas quanto desprovidos de ambigüidades. Eles devem, sobretudo, ser lidos literalmente, com perdão pela redundância, sem qualquer distorção de sentido ou de intenção, ou pelo menos deixando um espaço mínimo para as interpretações (que fazem a alegria dos advogados, mas o desespero dos juízes).
Minitratados, por suposição, deveriam ser versões reduzidas de seus irmãos maiores, contendo um mínimo de disposições num espaço restrito, mas este não é o caso dos meus mini-tratados, cuja função é exclusivamente para falar de sentimentos. Anos atrás, ao inaugurar a série, escrevi um minitratado das reticências (subtítulo: “em defesa de uma inutilidade necessária…”), que especulava, na verdade, sobre as indecisões da vida, os episódios de ambigüidade relacional que, vez ou outra, sempre enfrentamos, com bom humor ou com preocupação, mas que são inevitáveis em toda trajetória sentimental. (Ver esse primeiro minitratado num dos meus blogs, neste link)
As reticências, em todo caso, são mais fáceis de serem manipuladas do que as entrelinhas. Afinal de contas, elas podem ser jogadas aqui e ali, no meio ou no final do texto, segundo a vontade exclusiva do autor, um pouco para demonstrar suas pequenas continuidades descontínuas... Elas talvez funcionem como as crases, que, no dizer de Millor Fernandes, não foram feitas para humilhar ninguém, apenas estão ali para ajudar em caso de necessidade. As entrelinhas, por sua vez, podem existir ou não e todo o problema consiste em saber se elas estão, de fato, ali e o que podem fazer por nós. (Bem, mas talvez eu as esteja confundindo com as reticências...)
No caso das entrelinhas, seu principal problema, justamente, é que elas se escondem entre as linhas do texto, capciosamente, e não é fácil adivinhar o que, de verdade, elas estão querendo dizer. Tudo depende da interpretação que se pretende dar ao texto. Mas, pensando bem, se o texto é do próprio, ele pode “colocar” suas entrelinhas onde bem entender, certo? Nada, absolutamente nada, na vida de um mero redator de linhas tortas, na de um escrevinhador de ensaios surrealistas, ou mesmo na de um diplomata responsável por convenções e tratados, nada deveria impedir esse senhor da escrita de depositar (ou até de jogar) suas entrelinhas onde bem entendesse.
Bingo! Aí está a grande utilidade das entrelinhas: elas permitem, justamente, que possamos retirar de um texto texto qualquer aquilo que pretendemos, elas nos dão uma liberdade fundamental: a de ler um texto onde não existe nenhum texto, apenas a imaginação.
Bingo bis! Está aí: as entrelinhas nos libertam da rigidez dos contratos formais e daqueles compromissos muito estritos. Elas “estão” ali para nos dizer: aproveite, rapaz, levante os olhos desse texto chato e deixe voar a sua imaginação. Como diz a minha epígrafe bem escolhida, elas encerram uma possibilidade, sugerem a liberdade de interpretar, são capazes de acomodar os ânimos mais opostos... (ops, sem querer voltei às minhas reticências...).
Acredito que o autor (ou a autora) da epígrafe refletiu muito sobre a vida, seus contornos, seus retornos, suas surpresas e seus imponderáveis. Ele (ou ela) pode estar querendo dizer algo com seu minúsculo tratado sobre as entrelinhas. Deve ser alguém com experiência no manejo da palavra escrita e, sobretudo, dos sentimentos, seus e os alheios. Deve ter dedicado muitas linhas ambíguas a um amigo distante ou fora do seu alcance, momentaneamente. Refletiu muito sobre a vida e o coração, certamente...
A mim, também, como ao/à epigrafista, sempre me encantaram as entrelinhas. Curioso que, ainda antes de ter recebido as palavras em epígrafe, de uma maneira que agora me escapa, eu já tinha planejado escrever o meu mini-tratado das entrelinhas, precedendo uma poesia sobre os dois pontos e um mini-conto sobre o ponto e vírgula (todos eles sinais ambíguos, como o leitor há de perceber, promessas de algo mais, janelas para rotas ainda não determinadas, abertura para possibilidades imensas de dúvidas e de reflexões...). Eu ainda não tinha o formato definitivo deste novo mini-tratado, mas pretendia que ele fosse tão “obscuro” quanto o primeiro, das reticências, tão cheio de promessas quanto um travesssão de diálogo, tão aberto às confusões da mente quanto um salto de parágrafo, tão surpreendente quanto uma exclamação e tão questionador quanto um ponto de interrogação. Sou um diacrítico da escrita...
Pois eu fiquei muito meses parado, como que dominado por um ponto final, até que o/a epigrafista socorreu-me com suas frases esclarecedoras. Abriu-se todo um novo capítulo e eu resolvi escrever este texto, que, se não tem bem a forma de um mini-tratado, pretende pelo menos retomar a tradição dos diálogos peripatéticos, uma conversa com um interlocutor qualquer, que nos acompanha por um breve momento em nossa trajetória de pensamentos e reflexões. Uma rota ainda aberta, espero...
No silêncio de uma tela de computador, também há um pouco do mistério que ficou para trás, experiências que deixaram suas marcas em nossas mentes, sensações que ocuparam por alguns momentos nossos corações (ou que ainda estão lá...). São esses estados de espírito que estão presentes nas entrelinhas: eles não são visíveis, mas estão ali para os que sabem ver e sentir...
Na verdade, como sabem os cartógrafos, geógrafos, topógrafos e, em especial, os poetas, o horizonte é uma linha elástica, que recua cada vez que nos aproximamos dela. Sua paciência é infinita, assim como são infinitas as possibilidades abertas pelas entrelinhas... (ainda mais com reticências, desculpem a insistência...).
Eu queria dizer ao/à epigrafista involutário(a), que ele(a) muito me ajudou na tarefa de juntar minhas poucas idéias sobre as entrelinhas. Sem os conceitos ali transcritos eu jamais teria descoberto o poder secreto das entrelinhas, talvez eu nunca me decidisse por escrever este texto, todo ele feito nas entrelinhas. Não sei se ele será capaz, como escrito na epígrafe, de acomodar ânimos opostos, mas ele certamente ajuda a construir um cenário de mistério, um horizonte de esperança, uma promessa não cumprida. Eu consigo ver, nas entrelinhas deste meu texto, possibilidades ainda não exploradas, sugestões nunca realizadas, sonhos muitas vezes sonhados e ainda não acontecidos, pelo menos, até agora. Mas isto nada prejulga quanto ao futuro...
É tudo o que se espera, aliás, de um mini-tratado sobre as entrelinhas...

Brasília, 22 de janeiro de 2009.

sábado, janeiro 03, 2009

13) Um questionário auto-aplicado

ou autoaplicável…
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 3 de janeiro de 2009

Inspirado em exemplo similar que teria sido composto por Marcel Proust, como jogo de salão – embora alguns atribuam sua paternidade original ao poeta Mallarmé – resolvi aproveitar esta época do ano, apropriada para balanços, confissões, revelações e outros jogos de sinceridade, para também compor, e já responder, a um pequeno questionário cujas perguntas eu mesmo selecionei, ou formulei, com base em minhas preferências pessoais.
Quem desejar pode responder à vontade a este meu questionário, ou formular o seu, individualizado, com suas próprias perguntas, adaptadas a seu gosto ou à sua visão do mundo. Esta é a minha, e estas são as minhas respostas, que acredito sinceras. Mas, como sabemos todos, sempre somos induzidos ao auto-engano, à complacência com nossas próprias falhas e vícios, a uma versão mais benigna de nossas características e à exaltação de nossas qualidades, enquanto escondemos os lados menos enaltecedores de nossa personalidade (que seja, épocas de avaliação permitem essas liberdades…).

1) O que você considera ser felicidade?
Poderia ser simples, e dizer apenas isto: ficar numa rede, lendo bons livros (e sendo servido, claro). Complicando um pouco (e querendo, talvez, passar por altruísta ou magnânimo), eu diria que felicidade seria: viver num mundo de paz, sem carências materiais, sem conflitos de qualquer tipo, sem grandes aspirações que não a faculdade de poder desfrutar de um ambiente de cordialidade, de inteligências, de plena liberdade para a expressão do pensamento, de trocas positivas em todas as direções, de certeza que podemos contribuir positivamente para o bem estar de todos e a elevação espiritual da humanidade, permitindo a todos que usufruam à sua maneira de bens materiais, sem que isso se faça em detrimento de outros, ou da capacidade de todos de também poderem aspirar à realização de seus desejos.
Acredito que algo neste sentido já tenha sido expresso na declaração dos pais fundadores da independência americana, e outro tanto se encontra na declaração dos direitos do homem e do cidadão, da revolução francesa. Modernamente, temos a declaração universal dos direitos do homem (1948), que, provavelmente (ou quase certamente), ainda não conseguiu ser plenamente realizada em todos os países e regiões. Creio, assim, que antes de inventar novos direitos econômicos e sociais, as sociedades contemporâneas deveriam esforçar-se por cumprir com aqueles compromissos. Já seria um grande progresso para a humanidade e eu ficaria sinceramente feliz…

2) Onde você gostaria de viver?
Em vários lugares, mas suponho que seja impossível reunir todas estas bondades num único local: uma pequena cidade ao estilo europeu, densa de história, com velhas casas e ruelas entrecortadas por algumas avenidas modernas, restaurantes tão bons como se pode encontrar em pequenas cidades da Itália, com queijos franceses, vinhos brancos alemães, bibliotecas tão boas quanto as americanas, servidas por redes rápidas de acesso a tudo o que a humanidade já produziu de útil em dez mil anos de civilização, dispondo pessoalmente de algum carro médio (talvez japonês), para poder viajar em auto-estradas confortáveis, mas também por pequenas estradas vicinais arborizadas, podendo parar em lugares agradáveis para praticar gastronomia e cultura, de modo geral.
Também faria parte desse local imaginário algumas praias tão boas como as que temos no Brasil (embora eu não seja de praia, preferindo ficar à sombra, lendo livros com água de coco ao lado), com um povo tão simpático quanto parece ser o nosso, sem trombadinhas e outros assediadores ou amigos do seu patrimônio (que não precisa ser muito, apenas um cartão de crédito, que permita o suficiente-supérfluo). Acrescento uma ou outra montanha aqui e acolá, para o inverno, planícies verdejantes que abram a imaginação para nos incitar a escrever alguma história simpática, além de alguns rios caudalosos que sempre nos atemorizam e atraem. Topografia à la Disney, claro, sem mosquitos, moscas, formigas e outros seres incômodos, só bichinhos simpáticos…
Supondo-se que exista esse lugar (mas ainda não encontrei), imagino que ele seja facilmente disponível quando se tem tempo e dinheiro para construir os seus vários cenários ideais (o que nos remete à inevitável questão dos meios materiais e paciência para enfrentar muitas viagens de avião, indo de um lugar a outro). Imagino também que o futuro vai nos trazer um pouco de tudo isto, ao alcance de um click de computador, mas sempre será preciso deslocar o esqueleto de um lugar a outro deste nosso planeta encantador (depende do local, claro…).

3) Para que tipo de falha você é mais indulgente?
Para aquelas que não resultam de um ato deliberado do ser humano, mas que decorrem de um erro de julgamento, de avaliação, de um equívoco involuntário. Ainda assim, acredito que determinadas falhas humanas causam imenso prejuízo social e por isso teriam de ser sancionadas de alguma forma por uma instância independente de julgamento e sanção, pois sempre devemos assumir responsabilidade por nossos atos, mesmo os involuntários.
As fraquezas da paixão são, em geral, mais perdoáveis, pois se trata de uma química ainda não completamente dominada pelos seres humanos – se é que algum dia o serão – mas isso não implica em coonestar prejuízos materiais ou psicológicos infligidos a alguém por força de alguma paixão incontrolável. Volto a dizer que todos somos responsáveis por nossos atos e a compulsão dominadora não poderia a esse título ser sancionada, por ser simplesmente desprezível.

4) Que qualidades você admira no homem ou na mulher?
Difícil distinguir, sobretudo em nossos tempos de politicamente correto, quando o sexismo é seriamente condenado. Digamos que a melhor qualidade, em ambos, é a capacidade de ser bom, ou seja, de contribuir para o bem geral, sem qualquer distinção de condição. Ser bom significa viver para algo mais elevado do que a própria satisfação material ou espiritual de seus desejos individuais, mas preocupar-se com a sorte de outra pessoa, de qualquer outra pessoa. Significa algo mais do que simplesmente não causar mal a alguém, significa ativamente perseguir o bem e a felicidade para todos, a começar por si próprio e para os que nos são próximos.
Ser tolerante é uma outra qualidade indispensável, posto que todos somos falhos, em condição física, em caráter, em disposição para fazer um esforço adicional em prol do bem comum referido acima. Ser tolerante sobretudo com os que pensam diferente de nós, em tempos de fundamentalismos e fanatismos de várias espécies. Isso não inclui, obviamente, o relativismo moral ou cultural, pois acredito, sim, que existam valores que são universais e permanentes, e que devem ser acatados por todos. Os sacrifícios humanos, está claro, já não estão mais na moda, mas permanecem vários fanatismos de natureza religiosa ou racial, que cabe combater com o devido rigor. Acredito, sim, que devemos ser preventivos no combate ao mal, e isto inclui ser absolutamente intolerante com a intolerância: se Hitler tivesse sido contido no devido momento, não teria sido capaz de causar tantos sofrimentos a tanta gente. Mas, eu esqueço, talvez, da horda de ditadores, de todos os matizes, que já assolaram a humanidade desde sempre, cuja principal característica era justamente a intolerância com o pensamento alheio. Por isso acredito que a tolerância deve ser por vezes imposta a quem é intolerante, e isso eu também reputo como qualidade, a coragem de impor a tolerância…
O culto da inteligência é uma outra qualidade que admiro, em qualquer ser humano, sem que eu saiba exatamente dizer o que isto significa: provavelmente ter uma mente aberta a todos os aprendizados, a qualquer momento, saber rever suas concepções e argumentos, com base em novas evidências da realidade, em novas pesquisas, em um estudo aprofundado de qualquer problema que seja. Soluções simplistas não são apenas rápidas e mal feitas, elas podem causar danos irreparáveis, sem que se possa controlar a aplicação de qualquer medida com base numa avaliação ponderada de seus possíveis efeitos de curto e mais longo prazo. Como se diz: para cada questão complexa, sempre existe uma resposta simples, e geralmente equivocada. Devemos, por isso mesmo, cultivar o dom da inteligência, que talvez seja inata, mas que também pode ser construída, com base em esforço, persistência e honestidade intelectual.
Aliás, esta última qualidade é a que mais admiro em qualquer cidadão que fez do trabalho intelectual o seu ganha-pão: acima dos sucessos eventuais, dos benefícios materiais de sua atividade, está a honestidade quanto aos procedimentos, quanto à exposição dos resultados, quanto ao uso de argumentos racionais em apoio às suas teses ou em defesa de suas opiniões. Além de evidências concretas, todos temos direito a ter opiniões: elas apenas precisam ser expostas de forma clara e objetiva, como opiniões, justamente, não como artigos de fé…

5) Qual a sua ocupação favorita?
Sinceramente, acredito que talvez fosse não ter ocupação, justamente, mas talvez isso resulte em algum aborrecimento. Ficar flanando pelas cidades do mundo, poder fazer o que quiser a qualquer momento, talvez seja o ideal para qualquer pessoa que aprecia as coisas boas que a humanidade já produziu em séculos. Mas, justamente, sem considerar o problema dos meios materiais – supondo-se, no exemplo acima, que você disponha dos meios suficientes para ficar “flanando pelo mundo”, sem lenço, mas com documentos e um bom cartão de crédito –, o mundo nunca teria essas maravilhas para serem admiradas e visitadas sem algum tipo de compulsão ao trabalho, sem algum tipo de exploração do homem pelo homem, sem a competição que resulta de uma ambição qualquer ou o desejo de emular quem está melhor do que você mesmo, na disposição de bens materiais, no acesso à cultura ou à satisfação intelectual ou espiritual (o que se considera ser isso, em todo caso).
Portanto, todos temos ocupação, seja como independentes ou assalariados. Ser do primeiro time, isto é, independente, é para poucos, pois o empreendedor arrisca muito do que é seu para construir um patrimônio que o coloque ao abrigo, justamente, do domínio de outros (lembrando sempre, com Benjamin Franklin, que não escapamos da morte e dos impostos). A maior parte de nós prefere ter uma situação mais tranqüila, se é que se pode chamar de tranqüila a atividade “forçada” para algum patrão: existem os generosos, é verdade, as universidades e o setor público de forma geral, bem menos carrascos do que os capitalistas gananciosos, que arrancam ou couro dos empregados com algum tipo de benchmark de produtividade…
Sendo assim, melhor se dedicar a alguma atividade que combine o máximo de satisfação possível e o mínimo de preocupação necessária. Como eu não tenho esse espírito empreendedor que parece típico do capitalista – nem pretendo para mim grande remuneração financeira – a atividade que mais se ajusta a meu caráter é a intelectual, o que pode ser encontrado numa universidade ou em algumas ocupações do setor público, justamente. A diplomacia me parece ser, por acaso, a que combina o mais possível as virtudes de ambos mundos: intelectual o suficiente para me atrair, nômade na medida certa para também me atrair, a tranqüilidade da estabilidade – mas eu pessoalmente sou contra a estabilidade no setor público, inclusive na diplomacia – e a combinação de reflexão e ação na medida apropriada. Perto disso, ser professor também me agrada muito, tanto porque estou sempre aprendendo nessa ocupação, seja com os livros, novos e bons livros, seja com os próprios alunos (embora a maioria seja preguiçosa, alguns sempre se destacam pelos questionamentos e dúvidas, que nos esclarecem, também).
Finalmente, o que eu mais gostaria de ser seria leitor e crítico de livros, junto com a atividade mais séria de escritor, mas eu não tenho gêneros, exercendo-me nas mais diversas artes da escrita e da reflexão crítica. Acredito que ficarei feliz quando dispuser de mais tempo para ler, escrever, viajar, pensar, enfim, ensinar, que sempre estamos aprendendo ao ensinar…

6) Qual a seu principal defeito?
Tenho certamente muitos defeitos, alguns até mesmo despercebidos por mim, entre os quais provavelmente não se situa o “dom” da hipocrisia (ou seja, a capacidade de dizer coisas agradáveis a quem não merece). Não sei dizer exatamente qual o pior, pois isto envolveria, para uma boa resposta, realmente, uma pequena enquête entre os mais chegados e entre os menos tolerantes com os meus defeitos, pois eles certamente existem. Suponho que seja a ausência, estrito e lato senso, o que pode ser irritante em determinadas circunstâncias. Como estou sempre com alguma coisa nova na cabeça, lendo compulsivamente, ou escrevendo coisas que me vêem à mente nas mais inusitadas ocasiões. Sempre estou com um caderno de notas no bolso, o que me permite anotar qualquer coisa que intervenha em meu campo visual, auditivo ou mental. Essa capacidade em se abstrair, ou de se ausentar da realidade imediata, para penetrar no mundo das idéias, pode ser irritante para os que me cercam.
Falando assim, parece até positivo, mas o lado mais negativo dessa “ausência” é o egoísmo na leitura, e certamente minha subtração de atividades “corriqueiras”. Tenho pouca paciência para as banalidades da vida diária, desejando me concentrar apenas em coisas “elevadas do espírito”. Alguns psiquiatras poderiam dizer que isto é uma forma de “alienação”, embora eu esteja pouco ligando para a opinião desse tipo de intérprete da alma alheia. O que me interessa mesmo é ficar lendo e escrevendo, mas suponho que isto possa ser um grande defeito na vida social.

7) Quem você gostaria de ter sido?
Não imagino, atualmente, algum grande personagem histórico ou literário, que poderia me servir de inspiração ou modelo. Nunca desejei ser algum chefe militar, embora em determinada época desejasse derrubar o governo militar do Brasil pela força das armas, um pouco como no exemplo – altamente romantizado – dos guerrilheiros cubanos (que resultaram naquilo que se vê hoje, uma gerontocracia totalitária).
Talvez em algum momento um filósofo grego, estilo Sócrates ou um desses menos autoritários (Platão certamente não se encontra entre os meus preferidos, pois sempre desconfiei desses engenheiros sociais que pretendem reformar os homens e as instituições mediante iniciativas de implementação compulsória). Mas a filosofia sempre me parece algo distante das preocupações cotidianas, e o que eu queria, mesmo, era reformar o mundo, torná-lo menos injusto para os mais pobres – como minha própria família – e mais “confortável”, digamos assim, para todo mundo. Isso implica em algum tipo de atividade política, mas confesso que nunca tive nenhuma atração pela demagogia, pela mentira, pela hipocrisia típica dos homens políticos, e digo isto com bastante contenção, pois sei que nem todos são assim, e que, mesmo que eles sejam assim, a classe política, como os sacerdotes e outros vendedores de ilusão, fazem parte de nossa paisagem para o bem e para o mal (espera-se que mais do primeiro elemento).
Talvez tivesse querido ser algum intelectual famoso, não pela fama em si, mas pela possibilidade de aumentar a audiência, pois acredito que eu tenha algumas coisas inteligentes ou interessantes para dizer. Não me inspiro em nenhum em particular, mas dentre os políticos com feições intelectuais que me vêem à cabeça é inevitável não citar Winston Churchill, um jornalista, político, homem de guerra e escritor que, por mais imperialista e abusado que tenha sido, contribuiu em grande medida para construir o mundo no qual vivemos hoje. Certamente que, entre o mundo de Hitler e de Mussolini, e o mundo de Churchill e de Roosevelt, este é bem melhor do que aquele, e por isso ele pode figurar no meu panteão particular (sem qualquer culto, porém, por nenhuma de suas virtudes pessoais, apenas respeito e admiração pela sua obra de estadista).
O mais importante, em tudo isso, é a obra que deixamos, e esta obra precisa estar inspirada em boas idéias. Então, eu gostaria de ter sido todos aqueles que, com suas idéias e ações, contribuíram para tornar o mundo melhor do que ele é: geralmente, as pessoas de idéias não costumam ter poder, mas podem servir, ao estilo maquiavélico, de conselheiros do príncipe (e não considero Maquiavel intrinsecamente mau, ao contrário, apenas um intelectual patriota, preocupado com a miséria política e material da Itália do seu tempo). Creio que gostaria de ter sido Maquiavel, mas sem o seu exílio miserável.

8) Qual a principal traço de seu caráter?
Antigamente, era o de ser um pretenso “agitador revolucionário”, mas isto se perdeu na noite dos tempos. Atualmente, sinceramente, não saberia dizer. Uma pessoa amiga me disse que meus olhos “expressam tão puramente um misto de bondade e de perspicácia, qualidade tão incomuns separadamente, únicas quando na mesma pessoa”. Não sei dizer se é isso, exatamente, talvez seja, se assim me vê alguém com dotes de fino analista da alma humana. Aliás, nem sei se ter a pretensão de ser um “agitador revolucionário”, seja lá o que isso queira dizer, conformava algum traço de caráter, ou uma simples aspiração passageira. Em todo caso, essa fase já passou.
A mesma pessoa que me qualificou de bondoso e perspicaz, acrescentou: “É um equilíbrio tão cristalino quanto complexo”. De fato, mesmo quando eu pretendia ser um “agitador revolucionário”, estava ocupado em estudar e me preparar para fazer algo de útil, ou necessário, não para mim, exatamente, pois o sentido era o de alguma “ação social”. Nisso talvez vá o lado da “bondade”. Quanto à minha suposta perspicácia, não sei dizer exatamente onde ela se encontra, talvez na capacidade de analisar os dados da realidade e de tentar extrair daí as melhores conseqüências possíveis, que geralmente são as de menor custo social ou individual. Trata-se aqui de um raciocínio econômico, de tipo utilitário, pois acredito sinceramente que sempre devemos buscar as soluções que maximizem insumos e resultados, numa espécie de ótimo paretiano dos fatores de produção: os meus são a minha capacidade de leitura, de reflexão, de proposição, e creio que isto configure, aí sim, um traço de caráter.

9) Qual seria o seu sonho de olhos abertos?
Escrever um livro que fosse admirado por muitos e que pudesse figurar como uma espécie de clássico do pensamento, um ícone do meu tempo. Não sei se ainda farei isto, provavelmente não, pois não me dedico à literatura ou à filosofia, onde estão, aparentemente, os “clássicos” do pensamento, estando bem mais voltado para a história e a política do Brasil. Mas, nunca se deve deixar de sonhar...

10) Qual seria um grande motivo de infelicidade para você?
Provavelmente perder o dom da leitura e o da reflexão, o que pode vir com a idade, com a cegueira, ou algum outro acidente inabilitante. Mas lembremos que Borges ficou cego relativamente cedo, e continuou produzindo durante algumas décadas mais. Pessoas cegas costumam ser muito sensíveis, e desenvolvem outras habilidades. Mas, o fato de não poder ler mais diretamente, pode representar uma grande tragédia em minha vida. Talvez existam piores tragédias na vida, mas esta seria muito ruim para mim.

11) Qual o dom da natureza que gostaria de possuir?
Bem, eu calculo que para terminar de ler todos os livros que eu gostaria de ler, vou precisar de mais uns 150 anos (estou sendo modesto) e não sei se a natureza, ou os progressos da medicina, me darão essa faculdade (essa felicidade). Suponho, porém, que outros livros interessantes venham a ser acrescentados à minha lista nesses 150 anos adicionais, o que requereria mais 150, e depois mais outro tanto, e depois... Bem, o dom da imortalidade não existe, e por isso, eu gostaria de ser organizado, o que já seria um grande progresso.
Digamos que eu deveria deixar todos os meus papéis, livros e anotações feitas ao longo do último meio século em um estado tal que possam representar alguma utilidade para outros estudantes ou pesquisadores de nossa vida política, econômica, diplomática, o que já me deixaria feliz. Então, peço à senhora “mãe Natureza” que me dê o dom da organização, para que eu um dia arrume os meus livros – sempre tão difíceis de encontrar – e ponha em ordem meus papéis e cadernos.
È um pedido certamente modesto, e não sei se a Natureza será capaz de atender (provavelmente não), mas é com ele que termino este meu questionário anárquico, como sempre foram os meus escritos e reflexões. Termino por uma última pergunta.

12) Qual é o seu presente estado de espírito?
Otimista, mas preocupado, como sempre. Sempre tenho o otimismo incurável (o que é um chavão abusado) de fazer tudo aquilo que pretendo, algum dia, mas sempre ando preocupado, porque o tempo de que disponho me parece sempre insuficiente para cumprir tudo aquilo que planejei fazer. Em todo caso, neste momento, em que estou “perdendo tempo” com este questionário, tenho dois trabalhos no pipeline e um imenso livro que planejei escrever até o primeiro trimestre de 2009. Não sei se conseguirei, mas este estado de preocupação otimista vai continuar comigo, agora e sempre...

Brasília, 3 de janeiro de 2009.

12) Sobre a complicada condição de diplomata

Algumas pessoas acham que eu escondo minha condição de diplomata, ou que eu teria alguma restrição ao fato de ser apresentado como tal.
Isso não é bem verdade, do que é prova, aliás, todos os blogs (por acaso figurando na coluna da direita) que explicitam essa condição, assim como a exigência que é feita em muitos artigos publicados de se colocar a condição profissional.
Se dependesse apenas de mim, é verdade, eu nao colocaria essa condição, ou situação, ou profissão (seja lá o que for), não por alguma restrição mental em relação a ela, mas por simples razões de validade argumentativa e proteção, justamente, contra certos rótulos que nos são impingidos de fora, a partir de uma condição declarada.
Explico-me melhor.
Eu, como todos sabem, estou sempre escrevendo e publicando, inclusive sobre temas que não deveriam, normalmente, frequentar as "aparições" públicas de um diplomata, normalmente um funcionário discreto da burocracia de Estado, respeitoso dos códigos escritos e não escritos da reserva e da confidencialidade.
Acontece, simplesmente, que quando estou desenvolvendo argumentos ou opiniões que têm a ver com aspectos mais gerais do que a simples diplomacia, ou até sobre aspectos propriamente diplomáticos, quero que meus argumentos sejam tomados pelos que eles contêm de objetivo, pela sua validade intrínseca, não pela qualidade ou condição de quem os expressa. Argumentos devem se sustentar por si mesmos, e por isso evito, sempre quando posso, mencionar essa condição quando falo ou escrevo para um público mais vasto.
Não que eu tenha preconceito ou vergonha de minha condição, na verdade são as pessoas que mantêm idéias feitas sobre determinadas categorias de pessoas. Se elas sabem ou são avisadas de que ali está um diplomata falando, podem logo dizer: "Mas esse sujeito está apenas transmitindo a versão oficial do problema, ele está defendendo essas posições porque é um diplomata chapa branca, está a serviço deste governo".
Ora isso deforma ou distorce completamente o sentido de meus argumentos. Quero que eles sejam tomados em si mesmos, sem que minha condição influencia sua recepção. Ou seja, quero que a pessoa "dona" dos argumentos seja ignorada.
Esta era, alias, a posição de Machado de Assis enquanto crítico: olhar apenas a obra, e esquecer quem escreveu.
Acho que me fiz claro...