Uma questão de caráter, uma questão de escolhas
Paulo Roberto de Almeida
Em vôo de São Paulo a Paris, 6.03.2010
Estamos no século 21 e este, coincidentemente, é o meu trabalho 2121, uma redundância nos números, talvez, mas uma ocasião, como poucas vezes tenho, de escrever livremente, leve e solto, no ar, sem uma agenda determinada previamente ou algum esquema pré-ordenado, como raramente acontece. De fato, estou no ar, mais exatamente num vôo de São Paulo a Paris, a caminho de Shanghai, para mais uma viagem exploratória em torno de meu próximo posto, que será a responsabilidade de representar o Brasil na Shanghai Expo 2010, de maio a outubro deste ano, missão que em breve terá início. A chance de estar voando, no silêncio da noite, depois que todos os serviços de bordo terminaram, enquanto muitos dormem e alguns assistem filmes ou clipes no sistema de vídeo, constitui justamente uma oportunidade reflexiva e introspectiva, ao ter constatado que este seria o trabalho 2121 (se terminado).
Não por um oportunismo piegas, mas pela simples razão de que sempre aproveito esse tipo de ocasião para refletir sobre o que já fiz e para planejar sobre o que ainda pretendo fazer, tomo a oportunidade desta coincidência numérica para efetuar um pequeno balanço do período que passou e especular sobre os próximos meses, concretamente de aqui até o final do ano. O período que passou pode ser tanto a fase recente, os últimos meses de preparação para a estada na China, como os últimos sete anos, nos quais muita coisa aconteceu, algumas boas, outras menos boas.
Desde setembro de 1999, quando parti para Washington, até setembro de 2009, quando reintegrei os quadros do Itamaraty – que de fato não havia deixado, acontecendo apenas de estar sem funções na Secretaria de Estado, o que não foi, obviamente escolha minha – atravessei o que poderia ser chamado de meu deserto particular, uma longa travessia pelas estepes inteiramente identificada com escolhas políticas e idiossincrasias pessoais. Não posso dizer que não tenha sido responsável pelo longo ostracismo, provavelmente em função de minha propensão a sempre externar o que penso e a colocar no papel, e publicar, exatamente essas ideias que podem chocar alguns e surpreender a outros. Não tenho o que esconder ou tentar dissimular: todos os meus trabalhos – com exceção de alguns inéditos e dos working files, ainda mais numerosos – estão relacionados em duas listas sequenciais (de originais e publicados) e rigorosamente disponíveis em meu site pessoal. Não tenho o que esconder, e não tenho, justamente, por que esconder as minhas posições, que sempre foram manifestadas com toda a honestidade intelectual de que sou capaz, posto que não me dobro a conveniências políticas nem me dedico – isso jamais – a agradar pessoas ou a cultivar representantes políticos de qualquer espécie.
Não tenho o culto da autoridade – provavelmente o contrário – e não costumo manter relações apenas pela busca de vantagens pessoais ou profissionais. Tenho consciência de meu papel, enquanto servidor público, e tento servir mais à nação do que às pessoas, mais ao Estado do que ao governo, mais a certos princípios do que a vantagens momentâneas. Sei que confrontei muitos, por defender políticas não convencionais, mas não tenho a pretensão de defender causas que não são as minhas, por mais que elas recolham o consenso do momento. Pago o preço, hoje, dessa mania de querer discutir programas, políticas e medidas pela seu lado racional, pela análise de custo-benefício, pelo exame das alternativas possíveis e pela decisão final com base no melhor retorno alcançável. Talvez eu seja apenas um principista irrealista, mas é assim que sou e não tenho a intenção de mudar agora.
Tendo justamente expressado o que penso, e assumido responsabilidade pelas ideias que defendo, e que não me escuso de defender, carreguei o peso do exílio, um segundo em minha vida, apenas que desta vez involuntário. Como o primeiro exílio, este durou sete anos, período que aproveitei para ler, muito, pensar, bastante, escrever, outro tanto, e também publicar algumas coisas, não poucas segundo alguns, que talvez tenham alguma validade mais do que ocasional ou temporária. Nas duas ocasiões, “introspectei” muito, se ouso inventar um verbo a partir de um substantivo. Pude pensar na minha parte de responsabilidade sobre as situações que foram as minhas nas duas oportunidades, e elas provavelmente não foram poucas. O ardor juvenil pela causa transformadora levou-me ao primeiro exílio, a decisão de dizer o que pensava sobre as transformações em curso no período maduro acarretou o segundo exílio, não menos reflexivo e ainda mais estudioso do que o primeiro.
A tranqüilidade de olhar para trás e dizer que eu fiz o melhor que pude nas circunstancias dadas me confortou sempre nos piores momentos do isolamento e da travessia do deserto, tendo eu a certeza de que defendi os bons princípios quando eles estavam sendo violados ou contornados. Eu sempre me perguntei por que tanta gente é incapaz de contemplar a realidade e de chegar a conclusões sensatas que sejam capazes de produzir a felicidade para o maior número. Sempre pensei que fosse por pura ignorância, daí minha obsessão com o estudo e minha dedicação paralela – não sem algum sacrifício pessoal e familiar – a atividades didáticas e docentes, sob a forma de aulas e da publicação de textos que estão geralmente voltados para o público jovem de nível universitário. Descobri também que nem todos atuam por ignorância; existe também a má-fé, o oportunismo, o mau-caratismo e até mesmo o calhordismo, à falta de outras expressões mais contundentes. Adicionalmente, descobri que esses traços de caráter – ou falta de – se encontram mais disseminados em torno do poder, o que não deixa de ser compreensível, posto que quem busca o poder ou é muito idealista, ou é muito ambicioso (sendo generoso, neste segundo caso).
Não tendo cultivado, jamais, qualquer vontade de poder, provavelmente eu sou ingênuo ao julgar certas pessoas numa primeira abordagem, pois parto do princípio que todos estão, prima facie, orientados ao bem comum, o que muito raramente é o caso (mas isso só se aprende depois). Não tenho por que julgar agora certos atores de meu itinerário recente, embora eu devesse fazê-lo, pelo simples dever do praticamente amador da arte da História. Vou cumprir essa tarefa no momento oportuno, depois de alguma reflexão e muita ponderação.
No momento, ao deixar registro destas poucas reflexões a meio do caminho de minha primeira etapa de viagem, desejo apenas consignar minha intenção sincera de prosseguir no caminho que adotei desde muito cedo, este traço de caráter que ainda é o do garoto de biblioteca, e estas escolhas que são as minhas de fazer do ofício de escrevinhador introspectivo uma segunda natureza de minha vida, talvez mais importante do que as atividades públicas e o exercício profissional na burocracia do Estado. Estou seguro de que minhas opções de vida foram conscientemente pesadas para serem permanentes, preservando escolhas básicas das quais só posso me orgulhar. Ainda tenho opções a serem feitas nos anos à frente, mas elas não serão radicalmente diferentes daquelas que deram sentido à minha vida até o presente momento. Vou persistir naquilo que sempre fiz: ler, pesquisar, estudar, refletir, formular a síntese a que cheguei como resultado desse empenho na atividade intelectual, e depois escrever o que me parece mais inteligível ao maior número de jovens que porventura tiverem acesso aos meus trabalhos.
Que os bons valores persistam, em toda e qualquer ocasião.
Em vôo, SP-Paris, 6-7/03/2010.
segunda-feira, março 08, 2010
Assinar:
Postar comentários (Atom)
4 comentários:
Caro Professor:
Gostaria de agradecer pelo texto. Ele serviu a mim como uma magnífica fonte de inspiração.
Muito Obrigado
José Rogério
Parabéns pela sinceridade. Que este e outros bons valores persistam.
Agradeço a meus dois comentaristas acima, José Rogério e Pedro Paulo, que encontraram algo válido no meu texto deste post, um escrito de ocasião, puramente oportunístico (no bom sentido da palavra), mas também reflexivo e introspectivo, talvez só plenamente compreensível com um conhecimento mais detalhado de meu itinerário e meus escritos.
Por isso ele pode parecer relativamente obscuro à maior parte das pessoas que acompanha este blog, mas ele reflete, por assim dizer, minha personalidade.
Grato aos dois, até a próxima.
Paulo Roberto de Almeida
(Shanghai, 7 de abril de 2010)
Humildade sempre !
Postar um comentário