Outro texto que tinha ficado relativamente obscuro, composto a partir de uma percepção longínqua, mas bem informada, sobre essas criaturas que, por oportunismo barato, renegam o que pensam de verdade em troca de ficar roçando no poder. Sempre acontece com pessoas sem caráter, por isso é preciso denunciar, não as pessoas, mas o tipo de atitude
Paulo Roberto de Almeida (5/11/2011)
2122. “Brevíssimo
tratado da subserviência”, Shanghai, 12 março 2010, 2 p. Um raro escrito
dedicado a terceiros; homenagem a um personagem por demais presente nos últimos
tempos, em várias circunstâncias. Postado no blog Diplomatizzando (http://diplomatizzando.blogspot.com/2010/03/1781-brevissimo-tratado-da.html).
Reproduzido no blog Coisas Internacionais
(“Ler, Refletir e Pensar” 13.03.2010; Mario Machado; link: http://www.coisasinternacionais.com/2010/03/ler-refletir-e-pensar_13.html).
Brevíssimo
Tratado da Subserviência
Paulo
Roberto de Almeida
(um raro
escrito dedicado a terceiros)
O
subserviente é aquele que se dobra às conveniências de uma autoridade superior,
mesmo quando essa autoridade atua manifestamente em detrimento de seus próprios
interesses pessoais; o subserviente prefere submeter-se às inconveniências
cometidas por aquela autoridade, e o faz de livre e espontânea vontade, ainda
que de modo vergonhoso, a ter de corrigir, mesmo gentilmente, essa mesma autoridade.
O subserviente, que também pode ser considerado um sabujo, no sentido estrito,
não hesita em desmentir-se, a posteriori,
negar declarações suas, previamente tornadas públicas, ou em afastar-se de
posições anteriormente assumidas, ou defendidas historicamente, apenas para se
conformar à vontade, muitas vezes irracional e inexplicável, dessa mesma
autoridade superior. Obviamente, ele não seria subserviente sem essa degradação
moral.
O
subserviente profissional considera que sua própria sorte, sua sobrevivência
funcional, assim como seu futuro destino estão indissoluvelmente ligados ao
grau de subserviência máximo que ele conseguir expressar em favor de sua
autoridade oficial. Ele pertence, de corpo e alma, quando não de coração e
mente, a essa autoridade, à qual ele devota fidelidade canina e pela qual ele
está disposto a sacrificar seu conforto pessoal, sua coerência moral (se é que
dispõe de alguma) e até sua ética profissional, quando não sua consciência mais
íntima (se existir, claro) em favor do bem estar de sua autoridade, tudo isso
por escolha própria, não por imposição daquela autoridade. Sua sabujice
dedicada é, assim, introjetada, a ponto que ele não mais distingue entre o que
humanamente aceitável, e socialmente respeitável, e o que é subserviência pura,
sem qualquer hesitação ou exame de consciência. Ele não seria um subserviente
perfeito sem essa diminuição intelectual (se o termo se aplica).
O
subserviente completo se antecipa, de certa forma, aos problemas que poderiam
advir de alguma frase mal posta de sua autoridade. Em consequência de uma circunstância
do gênero, ele constrói toda uma teoria justificadora das bobagens superiores
com base numa suposta má compreensão por parte dos ouvintes ou interlocutores,
imputando aos demais as legítimas dúvidas que estes possam ter em relação às
inconveniências do chefe, o que o faz atribuir os equívocos de entendimento aos
próprios questionadores. Um subserviente assim tão bem construído é algo raro,
mas especialmente valorizado nas situações em que é preciso conter a autoridade
numa gaiola de ferro, compatível com a dimensão das bobagens produzidas.
Não é
fácil encontrar um subserviente perfeito. Existem muitos, claro, por propensão
inata de caráter, mas nem sempre eles são selecionados para servir diretamente
uma autoridade, embora alguns se esforcem bastante para conseguir uma tal
distinção (se o termo se aplica). Geralmente, um subserviente é construído aos
poucos, com a degradação gradual de caráter acompanhando os progressos da
carreira, até o ponto em que a subserviência se converte em segunda natureza,
algo assim indistinguível das características originais, ou construídas, do
personagem em questão. Essa promiscuidade entre o Dr. Jeckyll e Mister Hyde
passa então a não mais ser considerada uma alternância de personalidades, mas
constitui-se em algo sólido, um bloco unificado que acompanha o novo personagem
em toda e qualquer situação de subserviência prática (e as oportunidades são
muitas, posto que o subserviente existe sempre em função de uma autoridade
medíocre, cuja quantidade, infelizmente, parece se multiplicar ao ritmo da
erosão de qualidade das autoridades públicas).
Talvez
exista algum manual da subserviência, assim como existem muitos “Idiot’s Guide”
para qualquer coisa humanamente concebível, mas não foi possível encontrar
algum disponível no mercado, com essa abrangência teórica e essas pretensões
práticas. Talvez algum subserviente despertado de sua letargia intelectual
possa vir a conceber algum, o que seria útil para todo e qualquer candidato à carreira
de sabujo profissional. Não se espera que ele o subscreva em seu próprio nome,
a menos que suas deficiências morais e sua total falta de caráter o autorizem a
continuar a defender as bobagens de “sua” autoridade, mesmo quando esta deixou
de representar poder e prepotência. Afinal de contas, um bom subserviente tem
um currículo a defender, mesmo quando este não é o que parece, ou aquele que é
proclamado.
Shanghai,
12.03.2010
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