Minitratado da Reencarnação
Paulo Roberto de Almeida
Não, não quero falar da reencarnação “real”, aquela na qual acreditam piamente hindus e tibetanos, pelo menos os religiosos, nisso seguindo, ao que parece, os antigos egípcios, que já não estão mais entre nós para contar como era a sua experiência nessa matéria, supostamente rica. Os primeiros são radicais, capazes até de interromper a construção de um templo por uma minhoca que apareceu no canteiro de obras; afinal, nunca se sabe: pode ser a mãe de alguém. Enfim, se os egípcios ainda nos assustam com múmias de Hollywood, os outros nunca provaram o que afirmam.
Quero falar de outra reencarnação, de tipo virtual; uma que mobilizaria, ao que parece, os simples escritores, ou escrevinhadores, como eu, que ficam imaginando vidas alternativas com base no famoso what if?, isto é, o que eu faria se me fosse dado retomar o curso (que dizem retilíneo) da história, se eu pudesse inverter a flecha irrecorrível do tempo? O que eu faria se pudesse reescrever meu itinerário, se me fosse dado viver a mesma vida, mas escolhendo, com o benefício do hindsight, o melhor caminho para algumas das velhas (ou novas, diferentes) situações, se eu pudesse prever as consequências e fazer, assim, as escolhas mais convenientes?
Em outros termos, o que eu faria se me fosse dado configurar o “ótimo paretiano” de minha existência em nada extraordinária, mas bastante diferente da de muitos outros de minha geração? O que eu teria feito de diferente para, digamos, ficar rico, famoso e admirado? Bem, estou apenas usando uma figura de estilo. Nunca pensei em ficar rico, de verdade; embora, algumas vezes, as loterias, que eu não joguei, bem que poderiam ter ajudado a trocar algum carro velho. Mas todo mundo, pelos menos normal, sempre quer ser admirado pelos outros, o que implica ser famoso primeiro. Minhas vantagens comparativas nunca estiveram, hélas, nos esportes ou na música – sou o maior desafinado que jamais encontrei na vida e no mundo –, as duas áreas que mais rendem fama e dinheiro para os sortudos ou talentosos.
Minhas (poucas) vantagens comparativas sempre estiveram naquele setor infelizmente tão depreciado e desvalorizado no Brasil: a educação e a cultura. Fui um rato de biblioteca desde o início, e não poderia ser de outro modo, ao residir perto de uma biblioteca pública infantil. Enfim, poderia, sim, ter sido diferente, se eu tivesse preferido ficar mais tempo jogando pelada na rua, com a molecada do bairro, em lugar de me enterrar na biblioteca todos os dias depois da escola, e ainda retirar livros para ler em casa, no exato momento em que ela fechava, às 6 horas da tarde. Quase todo dia, eu levava um ou dois livros para casa, tentando devolvê-los já no dia seguinte; não era fácil, pois ler na cama, à contraluz, não era uma das coisas mais confortáveis que se pode imaginar para o devorador de livros que eu era (ainda sou).
Mas então o quê: como seria com alguma reencarnação de encomenda? Será que eu poderia ter ficado famoso como jogador de futebol? Não acredito! Eu só era um pouco menos ruim jogando que cantando; não creio que teria feito uma brilhante carreira do lado dos esportes e certamente nenhuma no campo das artes. Melhor, assim, ter ficado com os livros, que pelo menos me deram prazer intelectual, sem que eu me arriscasse a desafinar ou a desmantelar a armação do time a cada página virada.
Agora, retomando minhas opções preferenciais, como teria sido então? Com exceção de alguns poucos intelectuais de peso, quem, alguma vez, ficou famoso, no Brasil, por gostar de livros, ou por pretender ter uma carreira na educação, ou seja, no magistério e na redação de livros? Deveria eu trocar de reencarnação? Em qual tipo de personagem eu deveria reencarnar, exatamente? Teria de ser o contrário de tudo o que sempre gostei de fazer? Ler, refletir, escrever, eventualmente publicar o que resultar de tudo isso? Sei que jamais ficarei rico, muito menos famoso; mas quem sabe eu seria, enfim, admirado por todos aqueles que gostam dessas mesmas coisas?
OK, OK, então por onde começamos essa reencarnação dirigida para o que eu sempre gostei de fazer? Bem, eu recomeçaria exatamente pelo mesmo cenário infantil: uma biblioteca pública. O que mudaria, talvez, para aumentar minhas chances de sucesso no futuro projetado, seria a condição social de minha família: em lugar de pai e mãe que saíram da escola primária para trabalhar, pessoas de classe média. Não que eu tenha vergonha da pouca educação de meus pais, pois isso faz parte da vida, mas o fato é que eu cresci em uma casa sem livros e sem revistas ou jornais; seria preciso, pelo menos um pouco, dispor de dinheiro para comprar livros (e também aqueles sundays e banana-splits que eu cobiçava sem poder comprar).
Será que tudo é uma questão de dinheiro? Uma reencarnação com mais livros e mais dinheiro mudaria, de fato, a minha vida? Talvez ajudasse um pouco. Não creio que eu chegaria a ser, de verdade, muito diferente do que sou hoje: um amante dos livros, um obcecado por livros, um maluco que passa o seu tempo a ler, a refletir a partir dessas leituras e a escrever, colocando no papel as impressões de tudo isso. Um pouco mais de livros, não teria mudado essa “fatalidade”; afinal de contas, lendo o tempo todo, seria fisicamente impossível, talvez, ler mais ainda.
Enfim, se eu tivesse crescido em outro meio social, talvez eu pudesse ter comprado os livros que não estavam à minha disposição, nas várias bibliotecas que frequentava intensamente, e talvez tivesse publicado mais cedo, tendo alcançado aquela fama – não exatamente narcisista – que permite ter livros resenhados na grande imprensa e comentados pela chamada intelligentsia. Isso eu confesso que não consegui fazer, e talvez o meu projeto de reencarnação poderia ter ajudado em algo nesse departamento. Quem sabe eu poderia reencarnar como editor de mim mesmo? (Não! Isso seria uma fraude contra as boas práticas da difícil profissão de editor; os honestos, quero dizer, pois também existem os que fazem ação entre amigos.)
OK, reconheço agora que não estou escrevendo o que disse que iria fazer, ou seja, um minitratado da reencarnação; para restar fiel aos exemplos precedentes desta minha série, esta deveria ser uma peça sistemática, expondo rigorosamente, isto é, “cientificamente”, as bases da reencarnação, para depois retomar literariamente meu “outro” destino neste mundo tão imprevisível. O que na verdade flui do meu teclado é uma espécie de minibiografia saudosista falando apenas da minha obsessão por livros e pela palavra escrita. O que posso fazer se não sou perito nessa coisa de reencarnação, e sequer acredito nesse tipo de baboseira? Bem, peço o perdão dos crentes sinceros nesse tipo de coisa, ou seja, as “almas puras”. Acredito, também sinceramente, que os reencarnados verdadeiros, quando inteligentes, sempre têm coisas boas para contar.
Aqui entre nós, existem, de fato, reencarnados verdadeiros? Vocês também, como eu, não desconfiam dessas pessoas que pretendem ser a reencarnação de Cleópatra, de Júlio Cesar, de Napoleão? Nunca encontrei alguém que dissesse ter sido a reencarnação de algum escravo egípcio que construiu as pirâmides dos grandes faraós, que foi um dos assassinos do mesmo Cesar, ou um simples soldado de Napoleão, que morreu nas planícies geladas da Ucrânia, na inútil tentativa de voltar para casa. Alguém admite ter sido uma simples minhoca, como aquelas mães de tibetanos? Todos pretendem ter vivido algum personagem famoso. Blefe, tudo isso!
Bem, voltando ao meu projeto de reencarnação, ou melhor, ao espírito deste meu minitratado, quero dizer simplesmente isto: o que todo mundo procura, afinal, numa eventual volta ao mundo em condições melhores do que as anteriores – sim, também não conheço ninguém que pretenda voltar pior – é que, salvo um acidente ocasional, uma surpresa do acaso, é a virtude de pelo menos ser feliz no amor. Como teria sido se, em lugar daquela timidez incontrolável, eu tivesse tido a coragem de falar com aquela loirinha da terceira fila, tê-la convidado para o cinema de domingo, supondo-se que eu também teria dinheiro para o sorvete na saída? Como teria sido se eu tivesse tido a coragem de dar-lhe um beijo, e declarar o meu amor eterno? OK, mudando agora de assunto: suponhamos que eu tivesse tido a chance de ter ajudado no trabalho escolar da filha daquele editor famoso, que ele tivesse em seguida me convidado para escrever meu primeiro livro para jovens do ensino médio? Eu já teria sido famoso antes de entrar na Faculdade, onde eu evidentemente assombraria os professores com a minha erudição fenomenal e precoce. Talvez fosse convidado para ser assistente daquele famoso sociólogo que depois virou presidente por acaso...
Mas que coisa: estou sonhando. Reencarnação não existe, e o melhor que podemos fazer por nós mesmos é levar esta vida terrena – a única de que dispomos – de forma responsável, tentando ser bons para nós mesmos, para todos os que nos cercam, sem esquecer a humanidade em seu conjunto (estou sendo exagerado e pretensiosamente generoso, claro). Creio que a essência e o princípio de tudo para merecer uma boa reencarnação – para os que acreditam nessas coisas, claro – é fazer isso mesmo o que acabo de escrever: deixar o mundo melhor, pelo menos um pouco melhor, do que aqueles que encontramos quando aqui chegamos. Afinal de contas, somos todos responsáveis pela administração deste pequeno planeta perdido na imensidão da galáxia. Boa sorte aos que reencarnarem. É melhor ser ativo aqui mesmo, sem perda de tempo e sem esperar um ponto de partida melhor.
Ser responsável com o mundo e a espécie humana é difícil, mas isso se faz pelo trabalho honesto, pela participação cidadã nos negócios da comunidade, pela elevação material e espiritual – isto é, pela educação e cultura – de todos os que nos cercam e de todos aqueles que podem se beneficiar de nossas boas ações. Em resumo, devemos sempre visar bastante alto em nossos objetivos de vida, para que consigamos realizar pelo menos uma parte de tudo aquilo que almejamos. Isso, supostamente, nos traria um vale-brinde para a reencarnação, a ser descontado em algum momento de nossas vidas (inclusive, e de preferência, nesta aqui mesmo, na terrena). Pode também valer um ingresso em algum livro de recordações.
Em todo caso, boa sorte a todos os que miram na reencarnação. A minha, virtual, já está feita: ela se expressa naquilo que escrevo e publico. Vale!
Brasília, 28 de fevereiro de 2011 [Revisão: 05/11/2011]
Um comentário:
Difícil a compreensão deste texto. É preciso ler e reler inúmeras vezes. Talvez, seja isso que reflita como um imã para os amantes de bons textos. Apenas observo um conflito do autor, mas aindan não consegui descobrir a aflição em que o autor está submergido.
De qualquer forma, belo texto, belo texto...
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