domingo, março 08, 2009

15) Minitratado das interrogações - Paulo Roberto de Almeida

Minitratado das interrogações
(você tem alguma dúvida a este respeito?)
Paulo Roberto de Almeida

Interrogantes são inerentes à espécie humana, e talvez mesmo a certos primatas. Determinadas escolhas, ou caminhos, nos levam a uma situação de melhor conforto material ou de maior segurança pessoal, sem que, no entanto, saibamos, ou tenhamos certeza, ao início, que aquela opção selecionada é, de fato, a de melhor retorno ou benefício possível. Dúvidas, questionamentos, angústias, em face das possibilidades abertas em nossa existência, são inevitáveis em todas as etapas e circunstâncias da vida. Daí a interrogação, normalmente simbolizada pelo sinal sinuoso que colocamos ao final de certas frases: ?
Nossos vizinhos ibéricos, ou melhor, hispano-parlantes ou hispanófonos, são mais diretos e explícitos, posto que já começam a frase interrogativa pelo sinal apropriado – ¿ – que creio deveríamos também importar para a língua portuguesa. É uma maneira clara e direta, pelo menos na expressão escrita, de deixar patente que nossas dúvidas vão do começo ao fim de um problema. Sempre é assim, pois a incerteza precede a reflexão e a própria ação (muitas vezes no escuro). Melhor, portanto, começar todo o processo pelo começo, que é a demonstração aberta de que somos ignorantes e desejamos ou precisamos saber algo que não sabemos previamente.
Tendo já escrito um mini-tratado das reticências – ver aqui – e um outro sobre as entrelinhas – aqui – creio poder oferecer agora algumas reflexões sobre nossa ignorância fundamental, ou pelo menos, nossas dúvidas iniciais, sempre presentes nas mais diferentes situações a que somos confrontados.
Não vou me estender sobre as dúvidas ‘científicas’, ou seja, pelos procedimentos normalmente associados a todo e qualquer esforço de pesquisa, de investigação, de busca de respostas a problemas objetivos da vida acadêmica ou empresarial: qual a origem e as causas deste fenômeno ou processo?; como atender a este determinado problema prático em nossas vidas, como maximizar a satisfação do cliente, ou ainda, como despertar-lhe desejos até aqui insuspeitos por novos produtos que simplesmente não existiam ou que o consumidor nem sabia, antes, de que tinha ‘necessidade’? Tampouco vou me ocupar das dúvidas governamentais: quais são as verdadeiras prioridades da população?; como distribuir os recursos escassos em função de múltiplas necessidades?; como prestar contas das escolhas oficiais e dizer aos eleitores que nem tudo é possível ser feito ao mesmo tempo? Vou me dedicar, apenas e tão somente, às interrogações simplesmente humanas, mais exatamente relacionais, posto que as dúvidas e questionamentos existem geralmente em situações de interação social: como devo responder a determinado impulso pessoal ou demanda externa?; que desculpa devo dar à minha inadimplência involuntária ou de pura distração?; que profissão escolher, que concurso público fazer, que estudos empreender, além e acima do ensino oficial?

A primeira coisa que poderia ser dito sobre as interrogações é que elas são, de certo modo, inevitáveis. Ninguém escolhe ter ou não ter questionamentos, pois eles surgem espontânea e involuntariamente, eu diria até inapelavelmente, no curso de nossa existência, sempre cheia de dúvidas e incertezas, sobretudo as de ordem moral e afetiva. Saber o que é o certo e o errado, em circunstâncias normais, pode parecer trivial, pois aprendemos no curso de nossa formação alguns ensinamentos de nossos pais ou educadores, que nos transmitem algum sentido do justo e do injusto, do que é permissível ou não em nossas ações que atingem nossos semelhantes ou até plantas e animais. Hoje em dia, aliás, com o politicamente correto e o ambientalmente desejável, nenhuma criança mais sai por aí esmagando formigas e minhocas com os pés, como fazíamos décadas atrás: todos sabemos que qualquer ser vivo cumpre uma função na grande cadeia da vida, assim que chegamos a poupar até baratas, sem dúvida alguma os seres mais nojentos que nos é dado encontrar na vida cotidiana (bem, alguns têm dúvidas, justamente, se ladrões de velhinhas, pedófilos estupradores e políticos desonestos também não mereceriam figurar ao lado das baratas, mas isso é controverso, duvidoso, interrogativo...).
Essas interrogações não são as mais difíceis, e sim aquelas que surgem do chamado custo-oportunidade: fazer ou não uma coisa que é errada, mas que nos vai trazer uma vantagem imediata, ou cumprir as normas sociais independentemente do custo que isso possa acarretar? Refiro-me, por exemplo, à necessidade de seguir, ou não, as limitações de velocidade, quando estamos atrasados para um encontro?: vale acelerar nos intervalos dos pardais, ou devemos seguir a norma mesmo sob risco de desatender um compromisso previamente fixado? Inventar uma desculpa esfarrapada para o chefe quando se deixou de cumprir uma tarefa corrente, ou simplesmente reconhecer que não teve tempo nem condições de terminar o trabalho em tempo hábil? Pequenos dilemas morais...

Mas, tudo isso faz parte das rotinas costumeiras. As interrogantes mais importantes em nossas vidas são aquelas que têm a ver com nossa vida afetiva, com os compromissos assumidos com aqueles que nos são próximos, com as escolhas que temos de fazer e que determinam, em grande medida, o quantum de felicidade de que poderemos usufruir em nossa vida adulta e responsável. O cérebro, certamente, tem muitos interrogantes, inúmeros questionamentos, mas o coração tem muito mais, infindáveis dúvidas sobre o que fazer para trazer aquele sentido de paz interior que todos desejamos desfrutar, aquela sensação de prazer sensual que nos julgamos aptos a usufruir, um sentimento de plenitude na expressão de nossas paixões: amar e ser amado são, possivelmente, duas das mais poderosas forças de que dispomos, ou que nos “invadem” naturalmente em nossa existência, junto com o sentimento de medo (ou pavor), a insegurança física, o desconforto alimentar, o instinto sexual, a raiva (ou ódio) que naturalmente aflora em situações de grande stress emocional, causadas por alguma fonte identificável de agressão física ou moral contra nossas pessoas.
Deixando de lado todas as incertezas associadas a essas circunstâncias ou situações mais estressantes, as interrogações mais importantes em nossas vidas são essas mesmas: serei capaz de amar e ser amado pela pessoa ideal, encontrarei, em primeiro lugar, a pessoa ideal, saberei corresponder às expectativas dessa pessoa, poderá ela satisfazer minhas necessidades mais importantes como pessoa singular, saberei eu preencher sua vida como um par perfeito, estou pronto para assumir os encargos e obrigações de uma relação que, a rigor, deve ser considerada exclusiva?
Mas essas são interrogações iniciais, prévias e antecedentes, se poderia dizer. O que se segue é tão ou mais importante do que aquelas: por que não fui capaz de agir de outra maneira e coloquei tudo a perder?; por que fui tão inconsciente, ou egoísta, que afastei aquela pessoa amada de mim?; como devo proceder para reparar os erros cometidos?; como voltar para trás e recomeçar em novas bases?; seria isto verdadeiramente possível, imaginável, factível?; aceitaria a pessoa amada um retorno a algum status quo ante?; seria ela capaz de me perdoar, ou estaria eu disposto a perdoar alguém que me magoou e que feriu meu coração?; como posso fazer para reencontrar a paz e voltar a viver uma vida de felicidade e de contentamento interior, que é também um compromisso moral com alguma outra pessoa?
Existem, também, as interrogações ainda mais sérias, ou dramáticas: por que não fui até agora capaz de encontrar a ‘pessoa certa’?; por que a ‘vida’ me denegou o prazer de encontrar minha cara metade?; por que é tão difícil viver o relacionamento ‘ideal’?; ou por que fui perder aquilo que já tinha, num momento de puro egoísmo ou de completa desatenção com as necessidades daquela companhia? Estas são questões que nos colocamos em diferentes momentos da vida, interrogantes que todos nós, e cada um, já tivemos oportunidade de nos fazer em algum momento passado ou presente. E, também, não sabemos ao certo ser teremos de fazer as mesmas questões, ou seus equivalentes funcionais, em algum momento do futuro...
As mesmas questões também se colocam em sentido assimétrico, isto é, não diretamente relacional. São inúmeros os casos, talvez a maioria, em que o objeto do amor, da paixão, da sedução ou da conquista, qualquer que seja o termo apropriado, não está vinculado ao seu ponto de origem, isto é, não obtém correspondência direta. São os casos clássicos do triangulo, ou quadrilátero (ou polígono) amoroso: João que amava Maria, que amava José, que amava... Tudo isso é muito complicado, e só podemos nos colocar uma pergunta irrespondível: por que as coisas têm de ser assim e não de outra forma?; por que somos capazes de fazer mal, involuntariamente, a quem nos ama, sem que sejamos capazes de reparar esse mal, ou de encontrar, em outra situação, uma compensação, parcial que seja, ao nosso próprio sofrimento da lacuna aferida?; por que o destino, ou a fatalidade, nos prega tantas surpresas?

Não existem, obviamente, respostas fáceis, ou sequer possíveis, a todas essas questões. Nem sei se vale a pena colocá-las, já que elas não cabem num mini-tratado e constituem, mais propriamente, o livro mesmo da humanidade: imenso, interminável, contraditório, frustrante e cheio de realizações notáveis como a vida mesmo. Nenhuma ‘teoria dos sentimentos morais’ – para retomar o título de um dos livros do singular personagem social que foi Adam Smith – pode preencher ou eliminar as lacunas e dúvidas de nossa existência, que são ou estão ligadas nosso lado afetivo e amoroso. Não tenho a pretensão de esgotar ou de sequer aflorar todos os matizes do imenso painel de incertezas e interrogantes que constitui o coração humano. Mesmo tirando o coração do jogo – para os muitos materialistas – resta a química inescrutável de nossos neurônios, uma combinação provavelmente mais numerosa do que o número de objetos estelares, uma equação única e sempre mutável, posto que amamos e ‘desamamos’ sem qualquer regra ou compulsão pré-determinada, sem qualquer ordem racionalmente identificável. Ou seja, as interrogações continuam em número infinito em quaisquer circunstâncias...

Como não pretendo fazer deste ensaio interrogativo mais uma derivação de meu mini-tratado das reticências e como não pretendo que ele seja lido nas entrelinhas, prefiro, talvez, terminar o meu texto com algumas certezas pessoais que podem – ou não, a interrogante é de rigor – ajudar-nos a viver uma existência melhor com todas as questões que subsistem, são criadas de modo contínuo e continuarão a freqüentar a nossa existência pelo tempo disponível: se quisermos, essas minhas certezas constituem a minha ‘teoria dos sentimentos morais’, sem que eu deva copyright ou moral rights a quem quer que seja.

Acredito, sinceramente, que devemos pautar nossa existência por uma ‘lei’ da utilidade moral: fazer tudo aquilo que desejaríamos que outros nos fizessem, o que é velho como o cristianismo ou budismo, para ficar em duas filosofias de vida – não as considero como religiões, na perspectiva aqui retida – amplamente aceitáveis no plano moral ou social. Mais do que isso: devemos esforçar-nos para tornar a vida de outros ainda melhor, no plano dos confortos pessoais e materiais, do que aquela que nos foi dado contemplar ao tomarmos contato com essas relações voluntariamente aceitas, como parte de nossa existência. O bem que poderemos trazer aos seres que nos são próximos nos fará sentir uma satisfação superior à da própria perseguição de prazeres individuais, ainda que o egoísmo em causa própria não deva ser considerado sempre como um sinal de mesquinhez ou auto-suficiência: somos ‘mandatados’ naturalmente para buscar nossa felicidade pessoal, e isso implica algum egoísmo, sem dúvida.
As ‘injustiças’ cometidas contra nós nem sempre são o resultado do acaso ou derivadas da vontade unilateral de algum agente, mas podem ter a ver, justamente, com nossos pequenos egoísmos na vida cotidiana, nossas desatenções e equívocos – alguns deles cometidos de modo involuntário – que infligimos a outros muitas vezes sem perceber. As frustrações que experimentamos estão sempre colocadas num contexto relacional e, pelo menos em parte, ainda que minimamente, derivam de alguma ação anterior que conduzimos de modo leviano ou impensado. Por isso devemos ser o máximo tolerantes com os pequenos – alguns grandes – problemas criados num ambiente relacional, e tentar ver esse problema também da perspectiva da outra parte.
O mais importante, talvez, seja o ato de ‘ser bom’, qualquer que seja o significado que possamos dar a essa atitude ou postura. Ser bom nem sempre é ser caridoso, compassivo, benemérito. Significa, simplesmente, olhar para os outros e ver o que poderíamos fazer de bom, ou de útil, que melhore a vida humana sobre a terra, por mínimo que seja o gesto, por insignificante que seja o esforço: vale a motivação interior.
Tudo isso, evidentemente, tem mais a ver com algumas poucas certezas morais do que com as grandes incertezas no amor, ou no afeto, onde as interrogações permanecem ‘incuráveis’, se ouso dizer. Na verdade, o amor é um bem raro, algo extremamente raro para ser mais exato, ainda que ela se apresente e desapareça com muita facilidade de trânsito, se me permitem a expressão. Sendo raro, ele preenche aquela condição que os economistas estabelecem para a escassez relativa de bens: um valor de uso muito apreciado, mas um valor de troca bastante elevado, impossível de ser claramente posicionado nas curvas de oferta e demanda. Para ser mais exato, não há equilíbrio de mercado nessas coisas do amor, daí as questões e interrogações ainda maiores do que aquelas normalmente colocadas em situações de insuficiência de oferta e procura ilimitada. Curva, linha reta, parábola, linha elíptica de tendência, U, V, L, todas as posições e direções são possíveis no amor e não existe equação ou função capaz de apreender o comportamento de ‘elusive good’ e responder a todas as dúvidas do ‘consumidor’ (ou ‘produtor’) de amor. Somos parte interessada e estamos sempre nas duas pontas da equação, daí a sensação de uma equação que ‘não fecha’.
De certa forma, isso é natural, mas a verdade é que simplesmente não sabemos como fechar essa equação, toda ela dominada por imponderáveis, ambigüidades, incertezas, indefinições, enfim, interrogantes e questões não respondidas...
Assim é, e assim sempre será nestas matérias, para as quais nenhum mini (ou grande) tratado oferece conforto ou refúgio. Não tenho nenhum problema em reconhecer que este meu texto oferece muito mais interrogantes do que certezas, mais dúvidas do que respostas prontas, e ele é muito menos um ‘tratado’ – ou seja um corpo coerente de doutrina, com definições e respostas precisas – do que um livro aberto aos questionamentos. Mas é também verdade que, qualquer abordagem de um problema determinado deve começar, metodologicamente, por colocar, se não todas as questões, pelo menos as boas questões. Quanto ao esforço de síntese, ou o trabalho de responder a todas elas, isso fica para o paciente esforço monográfico para esgotar o problema em questão: como não pretendo fechar nenhuma questão, e tenho minhas próprias interrogações sobre todos os problemas aqui discutidos, fico com a proposta inicial de oferecer um rol de questões, tão simplesmente.
Esperando não ter decepcionado meus poucos leitores, termino com uma pergunta ao leitor insatisfeito: você teria feito melhor?

Brasília, 8 de março de 2009

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