domingo, outubro 07, 2007

8) PIB diplomático potencial

PIB potencial e disponibilidade intelectual
Paulo Roberto de Almeida
(www.pralmeida.org; pralmeida@mac.com)

Como sabem os economistas, o PIB potencial corresponde à máxima utilização possível dos fatores produtivos, sem que isso represente pressão inflacionária indevida, ou seja, uma situação de rendimento pleno das possibilidades oferecidas pelos fatores disponíveis sem gerar desequilíbrios que acarretem uma solução sub-ótima. Os números são sempre estimados, mas se considera um valor para o PIB potencial como sendo igual ao produto total que se conseguiria obter com o uso pleno da capacidade produtiva de uma economia, ao passo que os valores reais representam o resultado de certa ineficiência produtiva ou de utilização insuficiente de recursos (desemprego de fatores produtivos).
Acredito que a mesma relação deva existir para um outro tipo de “PIB”, que chamarei de “produto intelectual bruto”, podendo este ser dividido, igualmente, em potencial e real. O PIB real, neste caso, corresponde ao que é efetivamente produzido num determinado espaço de tempo (em geral um ano do calendário), ao passo que o potencial seria a “sobreprodução” ideal, com o pleno emprego de fatores, quais sejam as possibilidades intelectuais do cérebro humano (que me parecem propriamente infinitas). O único constrangimento “inflacionário” a ser considerado neste caso seria o esgotamento físico do “produtor potencial”: uma pessoa normalmente dotada, que pode trabalhar certo número de horas por dia, mas que deve empregar horas “vagas” em outras atividades fisicamente necessárias (lazer, sono, alimentação, convívio social etc.). A diferença, talvez, entre o PIB intelectual e o PIB tradicional, ou seja, a produção física de um determinado sistema econômico, é que o primeiro conhece menos limitações “físicas” do que o segundo. De fato, uma economia está constrangida a uma dotação dada de fatores – terra, capital, trabalho –, ao passo que o PIB intelectual potencial não sofre, em princípio, dos mesmos constrangimentos.
Ouso aplicar este tipo de raciocínio ao meu próprio caso, servidor de Estado do serviço exterior brasileiro, membro da carreira diplomática, podendo desempenhar “n” funções na SERE – Secretaria de Estado das Relações Exteriores – ou em posto do exterior. Adicionalmente, tenho certa capacidade intelectual para o exercício de funções didáticas e acadêmicas, que me levam a empregar certo número de horas, diariamente, na leitura, na pesquisa, na sistematização do conhecimento assim acumulado e seu oferecimento sob a forma de aulas, palestras e, sobretudo, de escritos, que são regularmente publicados sob a forma de artigos em periódicos ou de livros. Posso dizer que tenho utilizado quase que plenamente meu PIB potencial na elaboração desse conhecimento especializado em relações internacionais, esforçando-me por oferecer a leitores mais jovens uma fração daquilo que aprendi em leituras atentas, em viagens e em experiências diversas, na ativa observação da realidade e na reflexão ponderada sobre essa mesma realidade. Acredito ter desempenhado essas atividades em toda honestidade intelectual, o que significa que não mantenho “pré-conceitos” ou julgamentos a priori sobre qualquer coisa, mas que procuro retificar meus argumentos e posições com base numa consideração aberta de todos os elementos disponíveis que se oferecem à minha inteligência e capacidade de apreensão da realidade.
Uma avaliação sumária de minha produção intelectual – parcialmente disponível no site pessoal: www.pralmeida.org – indicaria que o PIB real, ou seja a produção intelectual efetiva, não é nada desprezível, consistindo em uma dúzia de livros próprios, mais meia dúzia de livros editados e algumas centenas de artigos em livros coletivos ou periódicos especializados (físicos ou digitais), alguns até em veículos generalistas. Ela é mesmo, de certa forma, impressionante, para alguém que não exerce atividades acadêmicas em tempo integral e que tem de produzir seus artigos e textos diversos nas “horas vagas” noturnas, depois de uma jornada dedicada a atividades profissionais “normais”. Esta é, pelo menos, a impressão que me foi transmitida por observadores independentes, isto é, pessoas que não me conhecem diretamente, mas que apenas registraram minha produção, por eles classificada justamente de “impressionante”, em face dos muitos textos publicados e inéditos que são até circulados sem o meu conhecimento (em especial por alunos em busca de idéias e materiais para algum trabalho universitário).
Acredito, contudo, que meu PIB potencial, por razões que independem de minha vontade, permanece aquém de minhas possibilidades efetivas. Senão vejamos: sou doutor desde 1984, algo não aproveitado em meu ambiente de trabalho profissional, com exceção de um breve período no ano de 1986. Posteriormente, jamais fui chamado a lecionar na academia diplomática ou para integrar bancas de cursos de aperfeiçoamento ou de altos estudos, mesmo já tendo atravessado os “ritos de iniciação” compreendidos no CAD e no CAE. Tampouco fui convidado para participar de obras coletivas organizadas pelo serviço exterior brasileiro, seja diretamente, seja através do seu “braço intelectual”, o IPRI, assim como sou regularmente ignorado em seminários que têm a ver com temas em que já trabalhei profissionalmente ou academicamente, como são os de história diplomática ou de relações internacionais contemporâneas, nos planos multilateral ou bilateral.
Creio que a razão principal pela não-utilização do meu “PIB” potencial se deva a fatores próprios à minha personalidade, ou seja, não sou apreciado pelos meus colegas, sobretudo as chefias, pois devo ser considerado arrogante, desrespeitoso, inconveniente, enfim, características pessoais que não se coadunam com o que se espera, normalmente, de um diplomata. Reconheço esses defeitos e posso até fazer um mea culpa, mas permito-me registrar, igualmente, que essas características não guardam a menor relação com a qualidade intrínseca dos meus trabalhos, que poderiam ser aferidos e avaliados objetivamente em função do seu potencial de contribuição para o enriquecimento intelectual da instituição a que pertenço, independentemente das qualidades (ou falta de) de quem os produziu. Em outros termos, metade (pelo menos) da responsabilidade pela não utilização de meu PIB intelectual potencial pode ser debitada à própria instituição, que atua em bases mais personalistas do que impessoais, como corresponderia a uma instituição weberiana ideal-típica, se ouso dizer.
Pode ser também que minhas contribuições não sejam consideradas como adequadas ou adaptadas ao tipo de “contribuição intelectual” que se espera de um diplomata “ideal”, em geral um ser reservado, discreto, não comprometido politicamente, evitando emitir opiniões pessoais sobre temas da atualidade corrente, sobretudo os que envolvem políticas públicas, em especial no seu campo de atuação. Ou seja, o contrário, em grande medida, do que eu sou, uma vez que não hesito em fazer uma análise o mais possível objetiva da realidade – o que às vezes pode destoar da visão oficial de um determinado processo ou evento –, como tampouco me eximo de expressar opiniões sobre temas que eu julgo relevantes do ponto de vista do interesse do país ou do serviço exterior brasileiro. Nesse ponto reconheço que não sou o diplomata “ideal”, já que sempre estou pronto a analisar algum problema, qualquer problema, pelo ângulo da lógica formal, do estrito atendimento de critérios objetivos de avaliação – análise de custo-benefício, por exemplo –, sem ceder a soluções de conveniência ou de oportunidade, que costumam expressar uma “verdade do momento”, que geralmente se confunde com a opinião ou a posição de quem a emite. Registro, assim, que já me choquei com “opiniões superiores”, geralmente em função desse meu convívio com a análise acadêmica, supostamente objetiva e desprovida de interesses imediatos, o que não deve ter feito bem para minha carreira ou inserção profissional.
Este talvez seja o preço a pagar pela “independência intelectual”, algo difícil de definir, mas que parece ter algo a ver com a liberdade de pensamento e as condições de sua expressão. Nem sempre, eu até diria quase nunca, instituições burocráticas caracterizadas fortemente pelo espírito de hierarquia e disciplina – como parecem ser a Igreja, as Forças Armadas e, neste caso, o serviço exterior, qualquer um – conseguem conviver com o tipo de independência intelectual que deveria caracterizar, idealmente pelo menos, as academias e outros ambientes de trabalho que se baseiam essencialmente na produção intelectual, como é justamente o caso da diplomacia. Trata-se de uma contradição nos termos, uma vez que a diplomacia – que se supõe seja um puro produto da “inteligência humana”, eventualmente apoiada em algum poder real – poderia se beneficiar com aportes inovadores ou não convencionais, mas parece que esse tipo de “aporte” depende da opinião pessoal de quem detém o comando do processo decisório na diplomacia.
Ao concluir estas reflexões, gostaria apenas de deixar registrado que meu PIB potencial, no campo “diplomático-intelectual”, pode estar sendo subutilizado tanto por deficiências próprias de quem escreve estas linhas, mas também por alguma incapacidade institucional em utilizar-se de valores disponíveis em quantidades “ilimitadas” e sem custo de produção. O desemprego de fatores sempre redunda em baixo crescimento da produtividade, algo que não deveria existir em sistemas dotados de racionalidade intrínseca. Salvo melhor juízo, claro...

Brasília, 26 de agosto de 2007.

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